Você que me lê, me ajuda a nascer.

quinta-feira, junho 25, 2020

Um preço muito alto: a jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas, Carl Hart.

Terminei de ler o livro de Carl e fiquei com a sensação de que éramos amigos de longa data.

Eu irei comprar alguns exemplares deste livro para doar à jovens negros que conheço, que estão no início de sua vida acadêmica ou mesmo no ensino médio. Carl é corajoso ao expor sua própria vida para fazer-nos perceber como muito sobre o que pensamos sobre drogas, pobreza e juventude está errado. Sim, errado ou maliciosamente errado, para ser mais enfática.

Esse livro é em parte biografia, em parte apresentação dos estudos que ele vem fazendo desde o mestrado sobre o uso de drogas e como elas afetam o cérebro das pessoas. Carl não tem vergonha de dizer muito sobre ele, mesmo que, para um professor de uma universidade Ivy League nos EUA pareça demais compartilhar conosco que ele passa por situações difíceis com relação a um filho mais velho que ele desconhecia. Dificilmente gosto de biografias feitas pela própria pessoa porque, na maioria das vezes, somos muitos bonzinhos com a gente mesmo e não nos colocamos à prova na escrita; viramos heróis, nossa trajetória é sempre épica e, quando leio parece que, desde pequenas, as pessoas sabiam o que queriam. Não nos expomos com todos nossos medos e fracassos. Mas Carl não é assim e isso me puxa mais para perto do que ele escreve; queremos ler coisas assim, sobre pessoas que muitas vezes não sabem o que fazer, que tem medo e que recuam, porque isso somos nós, mesmo depois de uma vida inteira que, olhando em perspectiva, pode ter parecido perfeita aos olhos de quem chega agora. 

Para mim, esse jeito de pensar ciência, o jeito de quem não sabia que a ciência ia atravessar nosso caminho é uma das contribuições que podemos dar ao mundo acadêmico com a nossa presença nele. Quando falo nossa contribuição, estou falando de nós, pessoas negras e pobres que acabam por conseguir concluir estudos acadêmicos que ainda são vistos como possíveis apenas para uma parte da população mundial. Vejo muita gente falando sobre ser afrocentrado e ler autoras e autores africanos, mas continuam fazendo as mesmas coisas de sempre em seus textos acadêmicos; não há nenhum exercício de autocrítica ou de demonstrar, a partir daquilo que aprendeu durante a vida, como a ciência é um saber falível e é por isso que você volta no outro dia para a pesquisa, é por isso que você explicita as regras estabelecidas, porque as coisas não são apenas naturais num mundo social.

Página a página, o autor vai demonstrando como é que alguém consegue escapar de uma vida que parecia predestinada ao fracasso. Ele também aponta como é possível que a situação em que viveu na infância colaborou no momento em que precisou tomar certas decisões na vida: mesmo que muitas vezes vejamos apenas dor, nossas privações nos ensinaram muito mais do que podemos imaginar. Lembrei-me de mim mesma em muitas situações porque, ter muito pouco (seja em matéria de dinheiro ou afeto) na infância me ensinou a me preocupar mais com minha sobrevivência, me ensinou a ficar longe de problemas que eu não poderia resolver facilmente sozinha, me ensinou a sentir prazer com minha própria companhia; é óbvio que essas coisas todas criaram traumas, mas não criou apenas trauma, me ajudaram a ter mais disciplina e coragem também. E assim me tornei o que eu sou. 

Dia desses, um amigo perguntou-me que conselho eu me daria se pudesse ligar para mim ainda criança. Disse, de pronto, que falaria que eu deveria me inscrever em aulas de dança ou de circo. Passado alguns minutos, pensei melhor e disse que não queria dar conselho nenhum para mim mesma, mas tão somente saber de mim, como eu estava e o que eu pensava da vida; fiquei com receio de, ao fazer aulas de circo ou dança, alterar demais meu futuro e não ser mais quem sou hoje, alguém que tenho muito orgulho e prazer.   

Carl não tem medo de expor que sabia de suas dificuldades de escrita ainda no doutorado, por exemplo. Isso é lindo e um alento para quem está dentro do universo acadêmico e vê apenas ego inflado e muita conversa fiada. Corajoso, sensível, tocando em pontos como relacionamentos interraciais e vergonha ou falta de traquejo com uma família que teve pouca formação educacional, Carl inspira demais em cada capítulo do livro. Senti-me um tanto abandonada quando o livro acabou, porque eu realmente estava vendo-o como um grande amigo, alguém com quem eu estava trocando ideias e a quem eu poderia confiar minhas dúvidas sobre como alcançar pessoas que conheço mas ainda não sei como.

A verdade é que, em termos relacionais, eu vejo muita potência em frases como "não sei" ou "preciso de tempo". Elas carregam alguma força e importância e não devem ser desconsideradas no processo de amadurecimento e na tentativa de aprender mais sobre como viver melhor com pessoas que amamos.



Ler Carl também me animou para fazer as pazes com as teorias comportamentais e querer estudar mais sobre neurologia, algo que uma colega de trabalho já havia sinalizado para mim há alguns meses atrás. Sim, a psicologia não deixou de ser uma área de estudos burguesa, mas pessoas como Carl tem tornado alguns de nossos problemas possíveis de serem ouvidos. 

Agrada-me profundamente a ideia que ele defende no livro e que vai de encontro à ideia de meritocracia que por vezes vejo pessoas negras ou outros grupos sociais alijados dos espaços de poder defenderem, ainda que não nitidamente mas de algum modo, quando ressaltam suas qualidades inatas ou algo do tipo. Carl diz o tempo todo no livro, o que te leva à excelência é a prática e isso você pode constatar, seja por exercícios físicos, seja pelo número de horas que você passa estudando. Eu concordo em absoluto com isso. A prática é o que nos coloca no jogo, em todos os sentidos falando.

Sei também que não é fácil praticar muitas vezes num mundo que nos diz que não conseguiremos ainda que tenhamos tentado todo o tempo. Ainda aqui, a força da prática encontra-se na própria força de se fazer praticar: apegue-se a ela e a cada dia ela parecerá parte de você. Eu vejo isso em mim em tudo que faço, absolutamente, desde conseguir sorrir em tempos de amargura a conseguir cumprir metas ou horários. Minha maior motivação sou eu mesma, em primeiro lugar. A sensação eletrizante de ter conseguido fazer desde metas simples como acordar, meditar, fazer exercícios (em qualquer tempo) a metas como poupar dinheiro, escrever um livro, entre outras coisas que parecem enormes mas que podem se tornar apenas mais uma meta, caso a prática já tenha se tornado sua amiga. 

É por conta da prática que aprendi a escrever e que aprendi a ler, é também por conta dela que aprendi línguas antes mesmo que começar a fazer cursos de modo regular (agora, com eles, aprendo mais e melhor). Carl Hart me ajudou a ter argumentos contra essa ideia absurda sobre pessoas que acreditam em méritos e só por isso, o livro dele é mais do que importante para mim. 

Obrigada por existir, dr. Carl Hart. Nessas horas, a gente tem um orgulho danado de ter virado professora universitária e vemos que é possível fazer diferença num ambiente que por vezes parece não ter saída. Esse livro me estimulou a ver em mim a importância que há em continuar fazendo o que faço, por mim e por tantas outras pessoas que ainda estão aqui. 


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