Você que me lê, me ajuda a nascer.

domingo, junho 14, 2020

Lugar de Fala, Djamila Ribeiro.

Todo mundo já leu, e eu? Eu não. Li apenas um capítulo, tempos atrás. Essa minha mania de só ler depois que não está mais na moda não vai me levar além. 

O ponto é que vale a pena ler, é uma introdução bacana sobre o tema e necessário para quem vive usando o conceito sem saber de onde surgiu. Sei que muita gente deve ter aprendido o livro nos muitos vídeos espalhados pelo You Tube, mas eu sou aquela que gosta de livro nesses casos. 

O livro me lembrou que eu preciso ler mais Lelia Gonzalez e que eu queria fazer um média metragem sobre Beatriz Nascimento. Gosto tanto dela, vai saber porque. Deve ser porque ela me lembra eu mesma mas também tantas outras pessoas que amo. 

O livro me apresentou autoras que já passaram por mim e eu não li ainda, como Linda Alcoff. Num texto de Sueli Carneiro, há muitos anos atrás, eu tinha ouvido esse nome e nada. E Gloria Anzaldua? O que estou fazendo que ainda não li mais nada dela? Não sei. Muita coisa, muita coisa.

Mas, uma coisa que o livro lembra e quase ninguém fala quando vive repetindo "meu lugar de fala" é: TODO mundo tem lugar de fala, gente. O que não dá é achar que pode falar por alguém ou silenciar vozes a partir de uma narrativa única. Há narrativas brancas e negras que são antirracistas, outras nem passam perto. 

Djamila diz que 

Por mais que sujeitos negros sejam reacionários, por exemplo, eles não deixam de sofrer com a opressão racista – o mesmo exemplo vale para outros grupos subalternizados. O contrário também é verdadeiro: por mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressões, elas não deixarão de ser beneficiadas, estruturalmente falando, pelas opressões que infligem a outros grupos. O que estamos questionando é a legitimidade que é conferida a quem pertence ao grupo localizado no poder (p. 39)

Rapaz, eu gostei disso. Gostei mesmo. Daí entender porque aquela pessoa branca que te conhece e diz que "tem uma amiga negra" muitas vezes achar que isso resolve o problema do racismo no plano individual. Não é que apenas não deixarão de ser beneficiadas, mas também o racismo estrutural em que ele foi cozido dele que nasceu não vai deixar de ferver e esquentar sua cachola. 

Eu gostei de

Um dos equívocos mais recorrentes que vemos acontecer é a confusão entre lugar de fala e representatividade. Uma travesti negra pode não se sentirrepresentada por um homem branco cis, mas esse homem branco cis podeteorizar sobre a realidade das pessoas trans e travestis a partir do lugar que ele ocupa. Acreditamos que não pode haver essa desresponsabilização do sujeito do poder. A travesti negra fala a partir de sua localização social, assim como o homem branco cis. Se existem poucas travestis negras em espaços de privilégio, é legítimo que exista uma luta para que elas, de fato, possam ter escolhas numasociedade que as confina num determinado lugar, logo é justa a luta porrepresentação, apesar dos seus limites. Porém, falar a partir de lugares é também romper com essa lógica de que somente os subalternos falem de suas localizações, fazendo com que aqueles inseridos na norma hegemônica sequer se pensem. Em outras palavras, é preciso, cada vez mais, que homens brancos cis estudem branquitude, cisgeneridade, masculinos (p. 47).

Ainda, acho que é preciso cada vez mais que pessoas brancas falem a partir do seu lugar e ótica sobre fenômenos como racismo, dos seus privilégios e interesses, daquilo que os transforma em alguém que tem raça e que os vê como norma, ou seja, se a ideia do lugar de fala é traduzir perspectivas desde dentro, que sejam as pessoas brancas a fazer denúncias sobre o racismo que nos atinge enquanto sociedade. Grada Kilomba diz "o racismo é um problema das pessoas brancas", Guerreiro Ramos diz "o racismo é um problema da sociedade brasileira" (não me perguntem as referências, aha, hoje é domingo), outra pessoa escreveu e eu ouvi num vídeo (esse não lembro mesmo, mas é bem comum) "o racismo é um problema dos racistas" (eu gosto mais das duas primeiras frases, que contém a terceira, mas é mais abrangente). 

"Vivem" dizendo que as pessoas negras precisam levantar a voz (usei "vivem" como se essas pessoas que nos dizem isso não tivessem raça e classe, aha, isso para soltar um veneno aqui) e dizer do racismo (Bacurau na veia, o inferno são os outros, peguem o jargão que quiserem), eu também deveria dizer aqui que são as pessoas brancas que devem levantar a voz e dizer dos seus privilégios e não nós que deveríamos apontar isso o tempo todo, porque parece ressentimento, mágoa, inveja, parece qualquer coisa menos o que é, white privilege. Não quero ser professora todo o tempo da vida e dizer como as pessoas devem ser mais sensíveis para viver junto. 

Eu vejo isso quando leio o que Silvio Almeida falou sobre o episódio George Floyd (acabei de ver um filme sobre o episódio Rodney King), como se só a gente pudesse falar da polícia branca que nos mata. Teóricos/as brancos devem tentar explicar porque isso acontece e não apenas nós, com toda a nossa dor, de novo, mais uma vez, again, porque algo contra nós acontece de modo sistemático; devem tentar explicar e devem expor suas caras na TV', em solidariedade antirracista, deve dizer e se contradizer, deve errar, como nós, como as pessoas humanas. É nessa hora que vejo que leram esse livro de ponta-cabeça, mas só de sacanagem. 

Eu consigo respirar, sim, por mim e por vários George Floyds. Eu ainda estou aqui e vou ficar por muito tempo. 



Djamila retada, livros ótimos numa coleção que alcancou muita gente (nunca mais um livro tinha dado tanto buchicho e fez as pessoas irem para tarde de autógrafos, eventos em teatros para se ouvir falar de lum livro, muito orgulho por ela, por nós), que massa.

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