Você que me lê, me ajuda a nascer.

domingo, agosto 28, 2011

São Paulo, dezoito de junho de 2008.


         Mãe, a benção. Por aqui, muito frio. Você bem que me avisou do clima dessa cidade quando eu decidi vir pra cá, pensava em estudar e além disso estava apaixonada e acreditava que só o amor era o que me salvaria das tristezas todas da vida. Ainda é assim aqui dentro, por mais que não tenha dado certo o primeiro amor. Hoje, mais um dia de trabalho. Muito trabalho. Saio de casa às seis da manhã e só volto as dezenove, você bem sabe. Preciso trabalhar, preciso pagar a casa que compramos com tanto esforço, preciso terminar meus estudos para te dar mais tranqüilidade na aposentadoria. Sei que não vai ser fácil, mas ninguém disse que seria e por isso continuo, por que não há mais nada a fazer a não ser continuar seguindo, pra vencer mais ali na frente.
Aconteceu de novo, mãe. Ontem à minha frente, na fila do banco, havia uma moça branca e alguns minutos depois da minha chegada o gerente apareceu, abriu os braços e um sorriso para ela e disse:
- Olá, dona Marta!
E apontando para mim, disse secamente, como se eu nem existisse:
- A empregada pode esperar aí mesmo.
Abaixei a cabeça, fingi mesmo que não existia, não queria chorar ali, não estava num dia bom para comprar brigas assim, na frente de todo mundo. Nem sempre você sai de casa disposto a matar leões, e ontem definitivamente eu só queria pagar minhas contas, como toda brasileira que se preza. Vim pra casa na lotação, amassada entre tantas outras gentes, pensando se existem motivos para tanta discriminação. Como alguém pode dizer quem você é o que você faz só de olhar pra você, só de ver sua cor estampada no seu rosto e cabelo? Eu sei que além de ser negra, sou nordestina, e mais, sou mulher. Não gosto de te aporrinhar com essas coisas não, mas minha língua bole aqui dentro e eu preciso desabafar, denunciar as coisas que assaltam meu coração, minha cabeça. Na outra carta te contei que quando fui naquele salão de beleza chique, uma senhora branca me perguntou se eu estava indo por causa da vaga de faxineira e você se assustou, se entristeceu demais, as duas coisas. Naquele dia entendi que não era vergonha de ser faxineira ou empregada doméstica o que eu sentia e me fazia chorar: tinha vergonha era de fazer parte do mesmo mundo de pessoas que por ignorância, por insensibilidade e preconceito, pensam que podem definir o que é ou o que faz uma mulher negra sentada na sala de espera de um salão de beleza.
Não sei ainda o que é pior: a saudade que sinto de você ou perceber que as pessoas não acham que esse tipo de coisa é racismo. Pensam que o gerente, tentando ser educado, cometeu um “pequeno deslize”, e que a senhora no salão querem só puxar papo. Chegam mesmo a dizer que eu é que invento as coisas, que sou eu quem reforço o racismo quando fico por aí dizendo que ele existe. Mas não é isso, a senhora bem sabe. Dói mais do que as pessoas pensam. Dói saber que ainda hoje, 120 anos depois que meus antepassados lutaram e conseguiram mudar o curso das coisas para voltar à condição que sempre tiveram, a condição da liberdade, de triunfo e de nobreza, irmãos e irmãs pelo mundo afora tenham atitudes ignorantes e insensíveis em relação a outras pessoas, por pensarem que cores e nomes podem dizer quem somos e do que somos feitos.
Mas não quero falar só de coisa triste não. Escrevo-te hoje por que quero deixar marcada essa data no nosso calendário, no calendário de nossa família, que há muito tempo sonha em ter seus filhos e filhas estudando em universidades por aí afora. Acabei de receber a notícia que passei para uma das poucas vagas da pós-graduação naquela universidade pública que eu tanto sonhava e que todos e todas me diziam ser impossível. Não te contei, mas no dia da prova, as pessoas me perguntaram se eu conhecia alguém lá para ter chegado até ali, e quando respondi que estava ali pela minha competência, me olharam com umas caras de surpresa, como se tivesse sido eu quem tivesse falado alguma coisa feia.  
Só uma coisa tenho que te confessar sempre: é difícil viver aqui longe de você. Mas nunca vou me esquecer de quando criança você acordava mais cedo para trançar meu cabelo, para enrolar mais ainda lá no alto da cabeça, me fazendo birotes, me contando histórias, cócegas e cafuné. É esse mesmo sorriso que tenho comigo agora, quando termino essa carta, e lá fora eu vejo uma menina negra, que de mão dada com um senhorzinho de pele escura e barba branca vai caminhando sem se preocupar com todos os preconceitos do mundo e com certeza merece um lugar melhor e mais bonito pra viver. Vamos viver pra ver isso, não é, minha mãe?
Te amo. Sua sempre filha,


4 comentários:

Godo disse...

Pqp. Posso espalhar?

Migh Danae disse...

Craro. Eu nem revisei, mas tá liberado. Manda todo mundo vir aqui no brogue me visitar.

Márcio Macedo disse...

Beautiful...

Migh Danae disse...

Thanks.