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domingo, maio 30, 2021

Menino de Engenho, José Lins do Rego.

 



Li esse livro por recomendação de um amigo, que sabe que gosto de ler biografias que tratam do tempo de criança das pessoas. Quem prefacia o livro menciona Gilberto Freyre logo de cara, um menino de engenho como o autor. A mim, interessava-me mais ler por conta das relações que aparecem ali no texto entre o autor, quando menino, e as crianças e pessoas negras ao seu redor.

As negras são as mulheres negras que trabalhavam na casa e na fazenda, asim como chamam a diarista de "a moça que trabalha lá em casa".  Os negros são as pessoas que trabalham (e eu lembro de Ki-Zerbo: não é porque somos negros que somos explorados, é porque somos explorados que somos negros"). Os moleques são as crianças escravizadas, mas fico sempre na dúvida, acho que entre os moleques há molecas também, muito embora o autor não cite e fale apenas de amores platônicos por meninas e mulheres brancas e os amores lascivos com mulheres negras, nunca meninas. Há duas delas: uma que o atormenta, que o procura - não consigo saber se é uma adolescente, creio que sim - e outra que ele é quem procura, essa já mais velha, conhecedora das artes do sexo. 
As meninas negras não aparecem, efetivamente.  
Quando o menino chega ao engenho e passa o dia a brincar, sua tia lhe diz:

- Você está um negro [...] (p. 43)

E isso nos faz pensar que a ideia que José Lins explicita na página 84-85:

O interessante era que nós, os da casa-grande, andávamos atrás dos moleques. Eles nos dirigiam, mandavam mesmo em todas as nossas brincadeiras, porque sabiam nadar como peixes, andavam a cavalo de todo o jito, matavam pássaros de bodoque, tomavam banho a todas as horas e não pediam ordem para sair onde quisessem. Tudo eles sabiam fazer melhor que a gente; soltar papagaio, brincar de pião, jogar castanha. Só não sabiam ler. Mas, isto, para nós, também não parecia grande coisa. Queríamos viver soltos, com o pé no chão e a cabeça no tempo, senhores da liberdade que os moleques gozavam a todas as horas. 

Quando lembra de sua infância, José Lins, já homem e escritor, faz-nos ter a ideia contrária do que vemos atualmente: ser "um negro" é viver a experiência plena da infância tal qual nós desejamos que as crianças vivam. Aí reside, porém, uma armadilha perigosa, na qual as crianças negras foram enrodilhadas: aos olhos adultos de quem não foi escravizado, ser "um negro" quando criança é algo que desejaria ser. Mas esse desejo só faz sentido dentro do contexto descrito pelo autor. O autor não queria ser "um negro" 24 horas por dia, certamente. Ele gostaria de ter, em alguns momentos de sua vida de menino, a mesma sensação que tinham os moleques; mas ao mesmo tempo, ele só pode elucubrar, escrever, desejar e sonhar porque não o é! Aos moleques, estas vontades não estavam ao alcance. 

Parece poesia mas, para mim, é só tristeza. Essa coisa de parecer poesia e conter violência e tristeza é algo, que para mim, incomoda deveras. Eu não quero que meus sentimentos caminhem nessas direções, não quero alimentar isso, essas literaturas às vezes me trazem essa sensação. O que fazer? Não sei. Só digo aqui.

Outra passagem que destaco, porque fala de branquidade, um termo que, inclusive, vejo José Lins usar na página 120 (no glossário, Iva Proença define branquidade como "preocupação em dizer-se branco, de ostentar pureza de sangue, isso em 2006) :

Depois mandaram-me para a aula dum outro professor, com outros meninos, todos de gente pobre. Havia para mim um regime de exceção. Não brigavam comigo. Existia um copo separado para eu beber água, e um tamborete de palhinha para o neto do coronel Zé Paulino". Os outros meninos sentavam-se em caixões de gás. Lia-se a lição em voz alta. A tabuada era cantada em coro, com os pés balançando, num ritmo que ainda hoje tenho nos ouvidos. Nas sabatinas nunca levei um bolo, mas quando acertava, mandavam que desse nos meus competidores. Eu me sentia bem com todo esse regime de miséria. Os meninos não tinham raiva de mim. Os meninos não tinham raiva de mim. Parece que inda os vejo, com seus bauzinhos de flandres, voltando a pé para casa, a olharam para mim, de bolsa a tiracolo, na garupa do cavalo branco que me levava e trazia para a escola. 

Nas páginas em que fala do avó coronel, José Lins repete aquelas ideias que me parecem ter sido o protótipo das ideias que vão produzir o mito da democracia racial e a perpetuação das ideias freyrianas entre nós, a de que as pessoas escravizadas preferiam ficar no engenho, que o fim da escravização trouxe mais problemas do que  soluções, que havia dono de engenho bonzinho. Coisas assim.    
 
Não quero comentar mais, embora pudesse. Quando leio, fico pensando que, em 1957, um livro que fala de um menino branco contraindo doença venérea com 12 anos daria mais o que falar. Mas, como sempre, desconfio que as pessoas não leem os livros, falam o que leem nos comentários. Deixa para lá.


                    José Lins do Rego

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