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terça-feira, janeiro 23, 2018

“Bons Tempos”, ou Bons Adultos?


Recebi esse texto de um amigo especial, José Roberto Barbosa. Achei bonito demais à época e pedi permissão para publicar aqui. Não editei nada, escrevo como ele me mandou. A vida nos separou e nos juntou, que bom. A vida é assim, eu prefiro que ela seja essa gangorra e tenha emoção e sentido do que uma coisa apática e morna. Eu o amo e nunca mais vou deixar de dizer isso.

“Bons Tempos”, ou Bons Adultos?

Diferente de muitas das pessoas da minha faixa de idade, ou mais velhas, eu nunca me deixei enganar. Sei que minha infância foi feliz não porque aqueles eram “tempos melhores”, mas sim porque eu tive a sorte de conviver com bons adultos que cuidaram de mim nesse período de grande vulnerabilidade que é a infância.
Pensando nas preocupações que tenho para com as minhas sobrinhas e outras crianças e adolescentes, que pertencem ao meu circulo familiar e de amizade, eu penso nas preocupações que meus pais e outros adultos que gostavam de mim tinham para comigo.
Eu tive sorte, pois enquanto eu crescia havia muitas crianças pela minha cidade, pelo Brasil e pelo mundo sendo molestadas sexualmente, espancadas, assassinadas, ou sofrendo (e frequentemente morrendo) pela ausência de alguém para cuidar delas. Enquanto eu crescia, nos postos de saúde ainda colocavam posteres contando os anos sem novos registros de paralisia infantil. Enquanto eu crescia e só tinha de ir para escola, havia crianças trabalhando em pedreiras, carvoarias, dormindo na rua, ou sendo vendidas para a prostituição.
Sim, as pessoas bebiam e dirigiam sem implicações legais. Sim, nós andávamos de carro sem cinto de segurança. Sim, às vezes nós que eramos crianças, íamos no porta – malas. E sim nós sobrevivemos. Só que teve muita gente que não sobreviveu, dezenas de milhares. Se não me engano, no inicio dos anos 1990, teve até uma propaganda sobre ter morrido mais gente no transito brasileiro do que norte - americanos na Guerra do Vietnã. De fato, todos os dias crianças e adultos morriam em acidentes, porque os adultos que dirigiam estavam alcoolizados. Todos os dias crianças e adultos morriam em acidentes, quando podiam ter sobrevivido se estivessem usando cinto de segurança. E quando um carro batia na traseira de outro, o que acontecia com as crianças que estavam no porta – malas? Como crianças que viajaram no porta – malas nós sobrevivemos, não por mérito próprio, por, supostamente, sermos uma geração mais forte (como nossos pais e avós também gostavam de dizer deles mesmos) e nem pela habilidade de quem dirigia, mas simplesmente porque tivemos a sorte de ninguém alcoolizado, desatento, ou com freios ruins bater na traseira dos carros em que estávamos. 
Eu também sinto nostalgia, às vezes muita. Mas o sentimento de nostalgia nunca me enganou. Os chamados anos 50, 60, 70, 80 e 90 não foram exatamente idílicos, como frequentemente afirmam aqueles que passaram por eles como jovens (ao menos aqueles cuja infância e adolescência foram relativamente seguras).
Repare que quem louva tanto os chamados “Anos 80” são aqueles que passaram por eles como crianças e/ou adolescentes. Aqueles que passaram pelos 80 já como adultos cheios de responsabilidade e preocupações não exaltam tanto essa década. Muitos até a chamaram de “Década Perdida”.
Penso que nem tanto para um lado e nem tanto para o outro. Mas a verdade é que os “Anos 80” idílicos só passaram a existir nos anos 2000.
No período de anos entre 1979 e 1990 houve sim (e propositalmente) muitas formas de entretenimento para crianças: Doces; Séries; Filmes; Brinquedos; Programas, com desenhos animados e brincadeiras; Grupos musicais infantis. Mas na mesma época: Houve crise econômica; Havia uma real ameaça de guerra nuclear; O HIV matava gente as pencas, porque não se sabia direito como se pegava; Havia o medo dos militares não saírem do poder; Havia a miséria acentuada pela seca no nordeste; Nos rincões do Brasil, latifundiários matavam (e ainda matam) serigueiros, indígenas, quilombolas e pequenos proprietários; houve o surgimento do crack e as drogas se tornaram uma epidemia.
Na década de 1980 do mundo real, não se falava em pedofilia como nas décadas seguintes, mas ela existia, e muito. E os casos eram, muitas vezes, abafados. E não apenas as crianças corriam riscos de serem sexualmente molestadas, pois as adolescentes não estavam totalmente seguras. Hoje, por exemplo, sabemos que cantoras e/ou apresentadoras adolescentes eram constantemente assediadas por marmanjos do mundo do entretenimento. E não eram só elas. Porque na época, no melhor estilo Roma Antiga, homens de 30 ou mais dando em cima de meninas de 14 era comum. Não que nas baladas, nos carnavais, bailes funk e festas universitárias de hoje não tenha muito disso. Mas hoje isso não é mais socialmente aceito, enquanto que na época você via homens feitos de 28, 29 anos indo de carro paquerar meninas que ainda cursavam a 7ª ou 8ª série e ai “tudo bem”. Os pais e mães que tentavam impedir esses assédios eram vistos pelo estereótipo de “pai ciumento” e/ou “mãe ciumenta” que não enxerga que sua filhinha já é uma “mocinha”.
E a década de 1990, também teve seus muitos problemas, embora, me parece, foram anos menos ingênuos do que os 1980. Menos ingênuos, ou, talvez, mais pragmáticos. Parece - me que, naquela década, “viver o sonho” não era um tema tão forte quanto nas décadas anteriores. Havia, acho eu, uma desilusão com o mundo.
Não estou querendo dizer que aquelas épocas eram melhores, ou piores, que a atual, mas definitivamente, no Brasil dos anos 1990 e nos períodos anteriores, faculdade era coisa para filhos e filhas das elites econômicas e camadas médias. Eu me lembro que, em 2001, quando eu terminei o ensino médio meu pai ficou todo sorridente. Nem ele, nem seu pai e avô puderam ir alem da 4ª série. E o bisavó dele, filho de “Ventre Livre”, nem sequer pode ir à escola, quanto mais o pai deste que chegou a viver na condição escravo.
Mas essa questão de décadas é apenas uma convenção. Afinal na virada de 31 de Dezembro de 1989 para 01 de Janeiro de 1990 o mundo e as pessoas, seres e coisas dele não me pareceram nada diferentes. O mesmo eu posso dizer da virada de 31 de Dezembro de 1999 para 01 de Janeiro de 2000. São apenas números de uma contagem. Nós é que atribuímos valores aos números dessa contagem.
Na minha vida, o que eu tive é sorte de ter pais que não foram ausentes, nem violentos (não além de algumas ocasionais chineladas), nem molestadores. Pais que garantiram que em um mundo de crianças literalmente morrendo de fome eu nunca tenha dormido de barriga vazia, mesmo nos momentos financeiramente mais difíceis. Pais que faziam um grande esforço por mim na época que eu tinha minhas dores de ouvido. Pais que me mandavam vir mais para o raso quando eu me empolgava na praia. Pais que mesmo não sendo milionários me deram uma infância rica, onde eu não tive tudo o que queria, mas muito do que precisava como pessoa em formação. Eu não tive todos aqueles brinquedos caros que via nas propagandas, mas tive a liberdade para brincar na rua e mesmo fabricar alguns brinquedos.
Eu tenho a sorte de ter um bom irmão mais velho, uma boa irmã mais nova, bons primos e primas e bons tios e tias. Minha mãe, meu pai, minhas tias e tios, tiveram infâncias mais difíceis, como os pais, avós e ancestrais antes deles. Mas usaram suas experiencias de vidas para nos dar boas orientações. Eles nos legaram um senso de unidade familiar muito forte, que ainda se mantem e tentamos passar paras novas gerações da família. Por meio de minha família tive acesso a uma grande riqueza cultural. 
Enquanto muita gente cresceu e cresce em bairros violentos, eu tive a sorte de crescer em um local de bairros relativamente seguros. Nós pudemos brincar na nossa rua, na rua de cima, na rua de baixo, em outras ruas próximas e também, vivermos aventuras no “Bambuzal” e no “Verdinho”. Havia festas de rua, como as festas juninas, organizadas pelo pessoal da rua, festas de aniversários nas casas e tudo mais.
Nas férias brincávamos até mais tarde. O único toque de recolher que eu tive na minha rua era o da minha mãe na hora do almoço e do meu pai que a noite assobiava no portão nos chamando. Não havia medo de balas perdidas. Brincávamos de “tiroteio”, mas nunca vimos um tiroteio real, como algumas pessoas que eu conheço. Para nós isso eram coisas que ocorriam em outros locais. Mas nós não eramos tão inocentes, pois os pais, as escolas, os jornais e as musicas de RAP não escondiam de nós que lá fora havia um mundo muito do violento e impiedoso e que não iria nos poupar só porque ainda não eramos adultos. 
Tive professores e professores, mas, felizmente, não tive nenhum daqueles professores, que diziam por ai, que eram perseguidores. Aqueles que, que se dizia que, “ferravam alunos, pelo prazer de ferrar”. Bons ou maus (em minhas ingenuas interpretações juvenis) todos realmente queriam que eu aprendesse alguma coisa.
Realmente, embora eu não pensasse assim na época, para mim, aqueles foram “bons tempos”. Mas não foram “bons tempos” por que na época “o mundo era melhor”, mas sim porque os adultos que viviam naquele lugar fizeram dele um “bom lugar”. O suficiente para que seus filhos, hoje já adultos, se lembrem do lugar de sua infância, como “um bom lugar e uma época boa”.
Comecei a escrever este texto apenas para expressar o que eu estava sentindo enquanto ouvia umas musicas. E agora não sei direito como terminar.
Bem, o que eu queria dizer é que... A nostalgia pode ser tanto benéfica, quanto nociva. É benéfica, quando ela nos traz boas lembranças que nos fazem sorrir e nos dão força. Mas se torna nociva quando nos arrasta para a depressão, por acreditarmos que vivemos numa época decadente em relação aquela época em que “tudo era melhor”. Mas acreditamos assim porque deixamos nossas paixões tomarem conta de nossos raciocínios e então nós idealizamos esses períodos de nossas vidas.
Nunca houve realmente uma época idílica. Problemas sempre houveram para todo mundo. Quando nos lembramos das coisas boas de uma determina época de nossa vida, tendemos nos esquecer que existiram também coisas ruins. E da mesma forma, quando nos lembramos das coisas ruins, nós tendemos nos esquecer que existiam também coisas boas. Por isso é sempre bom o exercício de pensar nos prós e contras. Tanto para os momentos de nossa vida, quanto para os momentos históricos. Isso nos impede de nos iludirmos. Hitler fez o que fez porque queria trazer de volta uma época, um mundo que nunca existiu fora da cabeça dos pangermanistas.
Claro que existem épocas e lugares em que as coisas ocorrem de forma mais favoráveis (embora nunca de forma perfeita) para uma ou mais pessoas e épocas e lugares em que as coisas ocorrem de forma mais desfavoráveis para uma ou mais pessoas. Mas isso é algo que tende variar de individuo para individuo. Quero dizer, o sujeito que outro dia falou sobre a época do Brasil colonial como “áureos tempos do Brasil colonial”, certamente estava falando apenas do ponto de vista dos abastados. Porque para quem era negro, indígena, ou qualquer pessoa sem posses, o Brasil colonial não teve nada de “áureos tempos”.
Por isso não me deixo iludir pelo sentimento de nostalgia. A minha infância e adolescência tiveram coisas boas, mas também coisas ruins. Eu, como todo mundo, passei por dores e tristezas. O racismo, por exemplo, foi e é augo terrivel e se não fosse minha família, particularmente o lado materno, eu seria um negro sem auto - estima. Infelizmente, minhas sobrinhas também estão tendo que lidar com o racismo na escola. Mas na avaliação, na soma entre minhas experiencias positivas, negativas e neutras, o resultado é a felicidade.
Eu não me deixo levar pela ideia de que “naquele tempo as coisas eram melhores” porque eu me lembro que não ocorreu tudo “as mil maravilhas” para mim e nem para ninguém. E porque eu sei que enquanto eu tive uma infância, moderadamente boa, muita gente passou por uma infância terrível.
Fui muito sortudo, acho eu.

José Roberto Barbosa (Contato: mubrotas@gmail.com)

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá Míghian...
Interessante você, que trabalha e pesquisa infância, trazer um texto que aparentemente não é nem adultocêntrico e tão pouco infantocêntrico. É um alívio!!! Pois, quando tenho a oportunidade de acompanhar as falas das pessoas que "representam politicamente as infâncias" da minha cidade ou ouvir palestras de pessoas que são referência na temática tenho ficado incomodada com dois pontos: primeiro é que a impressão que fica é a de que se retira a infância das margens sociais e transpondo-a ao trono (não sei, mas parece que ao anular a adolescência, a juventude e a velhice repetem-se os caminhos de exclusão da infância, só que ao inverso). Outro ponto é que da relação entre infância e educação escolar, ou seja, as narrativas produzidas que defendem a necessidade de outras relações entre crianças/adultos e conhecimentos. Contudo essas pessoas com discurso de escolarização "menos metódica" a defendem para qual infância? Pois, elas são as primeiras que @s filh@s estão matriculd@s nas escolas particulares de currículos e práticas mais tradicionais. Estes discursos prescritivos cansam...Pq sempre acusam a escola de fazer tudo errado, querem outros processos educativos escolares para @s filh@s d@s pobres, para @s filh@s del@s não...Discurso estranho...
Enfim, espero que as infâncias tenham também bons adultos!
Abraços
Velhinha (Das antigas)

Migh Danae disse...

Foi justamente por tudo isso que eu publiquei o texto... <3! Você não pode falar seu nome? Enigma...