... Não fiquem alarmados. Não se trata de uma avaliação. Simplesmente quero compartilhar com vocês algumas experiências com nosso amigo cabelo, e espero entreter e divertir a todos.
Durante um longo tempo, desde a primeira infância até a idade adulta crescemos física e espiritualmente (incluindo o intelecto com o espírito), sem que nos demos muito conta do fato. Na verdade, alguns períodos do nosso crescimento são tão confusos, que nem percebemos que se trata de crescimento. Podemos nos sentir hostis, zangados, chorosos ou histéricos, ou deprimidos. Jamais nos ocorre, a não ser que encontremos por acaso um livro ou uma pessoa capaz de explicar, que estamos em processo de mudança, de crescimento espiritual. Sempre que crescemos, sentimos, como a semente nova deve sentir o peso e a inércia da terra, quando procura sair da casca para se transformar numa planta. Geralmente não é uma sensação agradável. Porém, o mais desagradável é não saber o que está acontecendo. Lembro-me das ondas de ansiedade que me envolviam nos diferentes períodos de minha vida, sempre se manifestando por meio de distúrbios físicos (insônia, por exemplo) e como eu ficava assustada, porque não entendia como aquilo era possível.
Com a idade e a experiência,
vocês ficarão satisfeitos em saber, o crescimento torna-se um processo
consciente e reconhecido. Ainda um pouco assustador, mas pelo menos
compreendido. Aqueles longos períodos, quando algo dentro de nós parece estar
esperando, contendo a respiração, sem saber qual será o próximo passo, com o
tempo transformam-se em períodos esperados, pois enquanto ocorrem,
compreendemos que estamos sendo preparados para a próxima fase da nossa vida e
que provavelmente vai se revelar um novo nível de personalidade.
Alguns anos atrás passei por um longo período de inquietação, disfarçado em imobilidade. Isto
é, isolei-me do grande mundo a favor da paz do meu mundo pessoal, muito menor.
Eu me desliguei da televisão e dos jornais (um grande alívio!), dos membros
mais perturbadores da minha grande família, e da maioria dos amigos. Era como
se eu tivesse chegado a um teto no meu cérebro. E sob esse teto minha mente
estava extremamente inquieta, embora tudo em mim estivesse calmo.
Como é comum nesses períodos de introspecção, contei as contas do meu progresso
neste mundo. No relacionamento com a família e os antepassados eu agira
respeitosamente (nem todos concordarão, acredito); no meu trabalho eu havia
feito, usando toda a habilidade de que disponho, tudo que era exigido de mim;
no relacionamento com as pessoas com quem convivo diariamente, eu agira com
todo amor que podia encontrar no meu íntimo, Eu começava também, finalmente, a
reconhecer minha responsabilidade para com a Terra e minha adoração do Universo.
O que mais então eu devia fazer?
Por que, quando eu meditava e
procurava o alçapão de escape no alto do meu cérebro, o qual, nos outros
estágios do crescimento, eu sempre tive a sorte de encontrar, só achava agora
um teto, como se o caminho para me identificar com o infinito, o caminho que eu
costumava trilhar, estivesse selado?
Certo dia, depois de ter feito ansiosamente essa pergunta durante um ano, ocorreu-me que, no meu ser físico, havia uma última barreira para minha libertação espiritual, pelo menos naquela fase: meu cabelo.
Certo dia, depois de ter feito ansiosamente essa pergunta durante um ano, ocorreu-me que, no meu ser físico, havia uma última barreira para minha libertação espiritual, pelo menos naquela fase: meu cabelo.
Não meu amigo cabelo propriamente, pois logo percebi que ele era inocente. O
problema era o modo pelo qual eu me relacionava com ele. Eu estava sempre
pensando nele. Tanto que, se meu espírito fosse um balão, ansioso para voar e
se confundir com o infinito, meu cabelo seria a pedra que o ancoraria à Terra.
Compreendi que seria impossível continuar meu desenvolvimento espiritual,
impossível o crescimento da minha alma, impossível poder olhar para o Universo
e esquecer meu ego completamente nesse olhar (uma das alegrias mais puras!) se
continuasse presa a pensamentos sobre meu cabelo. Compreendi de repente porque
freiras e monges raspam as cabeças!
Olhei no espelho e comecei a rir
de felicidade! Tinha conseguido abrir a pele da semente e estava subindo dentro
da terra.
Então comecei as experiências. Durante alguns meses usei longas tranças (era
moda entre as mulheres negras na época) feitas com o cabelo de mulheres
coreanas. Eu adorava isso. Realizava minha fantasia de ter cabelos longos e
dava ao meu cabelo curto e levemente processado (oprimido) a oportunidade de
crescer. A jovem que trançava meu cabelo era uma pessoa que eu acabei adorando
– uma jovem mãe lutadora; ela e a filha chegavam à minha casa às sete da noite
e conversávamos, ouvíamos música, comíamos pizzas ou burritos, enquanto ela
trabalhava, até uma ou duas horas da manhã. Eu adorava o artesanato dos
desenhos criados por ela para a minha cabeça. (Trabalho de cesteiro! exclamou
uma amiga, tocando a teia intrincada na minha cabeça.) Eu adorava sentar entre
os joelhos dela como sentava entre os joelhos de minha mãe e de minha irmã
enquanto elas trançavam meu cabelo, quando eu era pequena. Eu adorava o fato do
meu cabelo crescer forte e saudável sob as “extensões”, como eram chamadas as
tranças. Eu adorava pagar a uma jovem irmã por um trabalho realmente original e
que fazia parte da tradição do penteado dos negros. Eu adorava o fato de não
precisar tratar do meu cabelo a não ser com intervalos de dois ou três meses (pela
primeira vez na vida eu podia lavar a cabeça todos os dias, se quisesse, e não
fazer nada mais). Porém, uma vez ou outra as tranças tinham de ser retiradas
(um trabalho de quatro a sete horas) e feitas novamente (mais sete a oito
horas); também eu não me esquecia das mulheres coreanas que, de acordo com
minha jovem cabeleireira, deixavam crescer o cabelo expressamente para vender.
É claro que essa informação me fez pensar (e, sim, me preocupar) sobre os
outros aspectos de suas vidas.
Quando meu cabelo atingiu dez centímetros de comprimento, dispensei o cabelo
das minhas irmãs coreanas e trancei o meu. Só então renovei o conhecimento com
suas características naturais. Descobri que era flexível, macio reagindo quase
com sensualidade à umidade. Com as pequenas tranças girando para todos os
lados, menos para onde eu queria que virassem, descobri que meu cabelo era
voluntarioso, exatamente como eu! Vi que meu amigo cabelo, tendo recuperado
vida própria, tinha senso de humor. Descobri que eu gostava dele.
Mais uma vez na frente do espelho, olhei para minha imagem e comecei a rir. Meu
cabelo era uma dessas criações estranhas, incríveis, surpreendentes, de parar o
tráfego – um pouco parecido com as listras das zebras, com as orelhas do tatu
ou os pés azul-elétrico do mergulhão – que o universo cria sem nenhum motivo
especial a não ser demonstrar sua imaginação ilimitada.
Compreendi que jamais tivera a
oportunidade de apreciar o cabelo em sua verdadeira natureza. Descobrir que
ele, na verdade, tinha uma natureza própria. Lembrei-me dos anos que passei
agüentando cabeleireiros – desde o tempo de minha mãe – que faziam trabalho
missionário nos meus cabelos. Eles dominavam, suprimiam, controlavam. Agora,
mais ou menos livre, ele ficava todo espetado para todos os lados. Eu
telefonava para todos meus amigos no país para relatar as travessuras do meu
cabelo. Ele jamais pensava em ficar deitado. Deitar de costas, na posição
missionária, não o interessava. Ele cresceu. Ficar curto, cortado quase até a
raiz, outra “solução” missionária, também não o interessava. Ele procurava
espaços cada vez maiores, mais luz, mais dele mesmo. Ele adorava ser lavado;
mas isso era tudo.
Finalmente descobri exatamente o que o cabelo queria: queria crescer, ser ele
mesmo, atrair poeira, se esse era seu destino, mas queria ser deixado em paz
por todos, incluindo eu mesma, os que não o amavam como ele era. O que acham
que aconteceu? (Além disso, agora eu podia, como um bônus adicional,
compreender Bob Marley como o místico que suas músicas diziam que era). O teto
no alto do meu cérebro abriu-se; mais uma vez minha mente (e meu espírito)
podia sair de dentro de mim. Eu não estaria mais presa à imobilidade inquieta,
eu continuaria a crescer. A planta estava acima do solo.
Essa foi a dádiva do meu
crescimento, no meu quadragésimo ano. Isso e saber que enquanto existir alegria
na criação haverá sempre novas criações para descobrir, ou redescobrir, e que o
melhor lugar para olhar é dentro de nós mesmos. Que a própria morte, sendo
parte da vida, deve oferecer pelo menos um momento de prazer.
Fiz esta palestra no Dia dos Fundadores, 11 de abril de 1987, no Spelman
College, Atlanta.
O texto faz parte do livro Vivendo pela Palavra de Alice Walker.
Esse texto foi publicado no blog de Nalui tempos atrás, mas quem me mandou de lá foi minha colega de estudos Míriam Lúcia. Não nos conhecemos pessoalmente, mas conhecemos pessoas que se conhecem, pelo que sei. Fica a dica do blog.
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