O sexo tinha acabado e eu ainda estava ofegante.
Deitei-me para dormir enquanto ele rapidamente recolhia suas roupas, entrava no
banheiro. Cantava sempre a mesma canção enquanto deixava a água escorrer pelo
seu corpo, eu nunca tinha visto a cena mas a imaginava inteira, dentro de mim.
Xangô é tata no mirararauê
Xangô é tata no mirararauê ô
Ele é Xangô ele é rei dos astros
Coberto de ouro coberto de prata
Kaô, Kaô Kaô, Kaô Dahomé
E Kao Kabiesile, Xangô Dahomé
Saiu do banho, enxugava-se sempre à porta, mesmo que isso fizesse a água
escorrer para dentro do quarto. Era uma de suas manias. Parecia ter medo de não
poder controlar o tempo ou as coisas que estavam perto de si, enquanto estava
alerta. Parecia querer sempre estar alerta. Tinha medos, mas não falava deles. Sempre
me dizia coisas sobre seu orixá, ao invés de falar de sua própria vida. Se era
uma forma de respeito aos nossos antepassados, por vezes eu ouvi todas as suas
histórias sobre como Xangô agiu ou agiria e imaginei que era também seu modo de
não falar sobre seus próprios sentimentos. Mas eu não podia queixar-me. Nunca
fui mulher de contar para ele as coisas que mais me inquietavam na vida, sobre
o futuro e filhos, trabalho ou morte. Eu também tinha meus modos de esconder o
jogo.
Conhecíamos-nos há pouco tempo, se contados os anos antes em que fizemos por tanto tempo as mesmas coisas e nunca havíamos nos visto. Tínhamos os mesmos lugares na cabeça quando falávamos de nossas infâncias, crescidas ali, Cidade Baixa. Nunca consegui escrever Cidade Baixa com letra minúscula e esse era uma das coisas que nos unia: num dos últimos bilhetes que ele sempre me deixava quando ia embora antes de mim dos quartos que pagávamos para nos encontrar, ele escreveu
Conhecíamos-nos há pouco tempo, se contados os anos antes em que fizemos por tanto tempo as mesmas coisas e nunca havíamos nos visto. Tínhamos os mesmos lugares na cabeça quando falávamos de nossas infâncias, crescidas ali, Cidade Baixa. Nunca consegui escrever Cidade Baixa com letra minúscula e esse era uma das coisas que nos unia: num dos últimos bilhetes que ele sempre me deixava quando ia embora antes de mim dos quartos que pagávamos para nos encontrar, ele escreveu
Queria ter estado contigo na Cidade Baixa quando deste teu primeiro
beijo mesmo que não fosse em
mim. Queria talvez ter estado à sua espera quando me contou
que saiu daquela viela sem luz com Paulo, seu primeiro namoradinho, queria ter
rido de ti e falado alguma coisa sobre como seu beiço parecia maior e inchado
ou coisa parecida.
Ou talvez quisesse mesmo ser eu o tal Paulo. Isso ainda não sei!
Beijo!
Convivia tão pouco com ele e mesmo
assim queria poder conhecê-lo pelas poucas coisas que fazíamos juntos.
Observava suas reações com as poucas pessoas com as quais tínhamos contato
quando nos encontrávamos, olhava seus olhos, para onde se voltavam enquanto
falava, como me tocava, como se excitava. Queria poder dominar todas pequenas
descobertas, mas no fundo tinha a certeza absurda que ele era bem mais do que
um encontro e sexo num hotel barato. Essa certeza me angustiava e me fazia
querer continuar ali, envolta em lençóis brancos, ouvindo as faixas que tocavam
aleatórias em seu iPod naquele
encontro. Queria continuar ali, mas queria fugir também. Nunca soube ao certo o
que fazer quando ele precisava ir embora, e ele sempre precisava ir embora
Nos últimos dois anos havíamos nos encontrado todos os meses em algum quarto não tão estrelado em diversas partes do Brasil. Eu ou ele precisávamos fazer algum esforço, por vezes o meu trabalho me levava ao interior de um estado e eu deveria tomar um ônibus para encontrá-lo num fim de noite na capital, por vezes era ele quem estava no interior, mas não dispunha de tempo para vir até mim e era eu novamente quem tomava o ônibus para ir encontrá-lo. Algumas horas, que muitas vezes eram divididas com outras pessoas, amigos de infância que ele e eu tínhamos espalhados pelas cidades e que também estavam longe de casa. Todas essas cenas eram costumeiras: a viagem, a chegada, os amigos, as amigas, as confissões, as bebidas e o desejo. Ele recompensava minhas viagens me mandando postais diferentes a cada lugar que ia e eu ainda não conhecia, e vez por outra me escrevia a frase:
Nos últimos dois anos havíamos nos encontrado todos os meses em algum quarto não tão estrelado em diversas partes do Brasil. Eu ou ele precisávamos fazer algum esforço, por vezes o meu trabalho me levava ao interior de um estado e eu deveria tomar um ônibus para encontrá-lo num fim de noite na capital, por vezes era ele quem estava no interior, mas não dispunha de tempo para vir até mim e era eu novamente quem tomava o ônibus para ir encontrá-lo. Algumas horas, que muitas vezes eram divididas com outras pessoas, amigos de infância que ele e eu tínhamos espalhados pelas cidades e que também estavam longe de casa. Todas essas cenas eram costumeiras: a viagem, a chegada, os amigos, as amigas, as confissões, as bebidas e o desejo. Ele recompensava minhas viagens me mandando postais diferentes a cada lugar que ia e eu ainda não conhecia, e vez por outra me escrevia a frase:
Eu estive aqui antes de você. Mas
eu sei que você virá aqui também.
Não me lembro bem como começou e
porquê. Acho que a gente se sentiu sozinho em algum momento da vida. A gente
nunca falou disso. Eu não gosto de parecer fraca, tomada por algum sentimento
maior do que eu. Eu não sei muito sobre ele, embora saiba muito sobre o que lhe
aconteceu nos últimos meses. Mas, ainda assim, é um homem suficientemente
inteligente para não se deixar apanhar de modo fácil. O sexo era sempre bom, o
sexo parecia ser tudo antes do encontro mas depois só completava as conversas
ao telefone, as mensagens de texto, os emails
engraçados. Era só sexo, mas eu queria dizer a ele, agora, enquanto finjo
dormir, que eu nunca acreditei que alguma coisa pode ser só sexo.
Falar isso poderia ser romântico demais para alguém com uma vida como a minha. Morando sozinha e sem nenhuma ideia do que me acontecerá nos próximos meses, eu continuo fingindo dormir. Esse compromisso com as palavras, como se depois do eu te amo devesse vir logo um vou ficar contigo.
Falar isso poderia ser romântico demais para alguém com uma vida como a minha. Morando sozinha e sem nenhuma ideia do que me acontecerá nos próximos meses, eu continuo fingindo dormir. Esse compromisso com as palavras, como se depois do eu te amo devesse vir logo um vou ficar contigo.
Agora, enquanto ouço o barulho de
seu zíper se fechando, não sei se quero ir embora. Pelo menos hoje não. Mas
essas coisas também tem seu preço. A porta se fecha e ele vai. Pela primeira
vez, hoje, durmo de verdade e sonho um sonho em que a gente de novo não se
conhece. É um parque de diversões e estamos na roda gigante, cada um num banco,
sozinhos. Ele olha para trás, eu sorrio. O sonho acaba, eu acordo, cabeça
girando. Pela primeira vez, ele não me escreve um bilhete.
Acho que é um jeito também de dizer adeus.
6 comentários:
Lido.
Suas palavras sempre me tocam... Lindo!
Sua presença sempre me toca, linda!
Ouvindo o novo cd' de Lizz Wright, eu sou mais feliz.
E Godo, lido é significa "não gostei?"
Cheiro,
Gostei sim, especialmente dos 2 últimos parágrafos.
Ufa! Melhor assim!
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