Você que me lê, me ajuda a nascer.

quinta-feira, novembro 17, 2011

Confissão.




         O sexo tinha acabado e eu ainda estava ofegante. Deitei-me para dormir enquanto ele rapidamente recolhia suas roupas, entrava no banheiro. Cantava sempre a mesma canção enquanto deixava a água escorrer pelo seu corpo, eu nunca tinha visto a cena mas a imaginava inteira, dentro de mim.

Xangô é tata no mirararauê
Xangô é tata no mirararauê ô
Ele é Xangô ele é rei dos astros
Coberto de ouro coberto de prata
Kaô, Kaô  Kaô, Kaô  Dahomé
E Kao Kabiesile, Xangô Dahomé

Saiu do banho, enxugava-se sempre à porta, mesmo que isso fizesse a água escorrer para dentro do quarto. Era uma de suas manias. Parecia ter medo de não poder controlar o tempo ou as coisas que estavam perto de si, enquanto estava alerta. Parecia querer sempre estar alerta. Tinha medos, mas não falava deles. Sempre me dizia coisas sobre seu orixá, ao invés de falar de sua própria vida. Se era uma forma de respeito aos nossos antepassados, por vezes eu ouvi todas as suas histórias sobre como Xangô agiu ou agiria e imaginei que era também seu modo de não falar sobre seus próprios sentimentos. Mas eu não podia queixar-me. Nunca fui mulher de contar para ele as coisas que mais me inquietavam na vida, sobre o futuro e filhos, trabalho ou morte. Eu também tinha meus modos de esconder o jogo.
Conhecíamos-nos há pouco tempo, se contados os anos antes em que fizemos por tanto tempo as mesmas coisas e nunca havíamos nos visto. Tínhamos os mesmos lugares na cabeça quando falávamos de nossas infâncias, crescidas ali, Cidade Baixa. Nunca consegui escrever Cidade Baixa com letra minúscula e esse era uma das coisas que nos unia: num dos últimos bilhetes que ele sempre me deixava quando ia embora antes de mim dos quartos que pagávamos para nos encontrar, ele escreveu

Queria ter estado contigo na Cidade Baixa quando deste teu primeiro beijo mesmo que não fosse em mim. Queria talvez ter estado à sua espera quando me contou que saiu daquela viela sem luz com Paulo, seu primeiro namoradinho, queria ter rido de ti e falado alguma coisa sobre como seu beiço parecia maior e inchado ou coisa parecida.
Ou talvez quisesse mesmo ser eu o tal Paulo. Isso ainda não sei!
Beijo!

       Convivia tão pouco com ele e mesmo assim queria poder conhecê-lo pelas poucas coisas que fazíamos juntos. Observava suas reações com as poucas pessoas com as quais tínhamos contato quando nos encontrávamos, olhava seus olhos, para onde se voltavam enquanto falava, como me tocava, como se excitava. Queria poder dominar todas pequenas descobertas, mas no fundo tinha a certeza absurda que ele era bem mais do que um encontro e sexo num hotel barato. Essa certeza me angustiava e me fazia querer continuar ali, envolta em lençóis brancos, ouvindo as faixas que tocavam aleatórias em seu iPod naquele encontro. Queria continuar ali, mas queria fugir também. Nunca soube ao certo o que fazer quando ele precisava ir embora, e ele sempre precisava ir embora
        Nos últimos dois anos havíamos nos encontrado todos os meses em algum quarto não tão estrelado em diversas partes do Brasil. Eu ou ele precisávamos fazer algum esforço, por vezes o meu trabalho me levava ao interior de um estado e eu deveria tomar um ônibus para encontrá-lo num fim de noite na capital, por vezes era ele quem estava no interior, mas não dispunha de tempo para vir até mim e era eu novamente quem tomava o ônibus para ir encontrá-lo. Algumas horas, que muitas vezes eram divididas com outras pessoas, amigos de infância que ele e eu tínhamos espalhados pelas cidades e que também estavam longe de casa. Todas essas cenas eram costumeiras: a viagem, a chegada, os amigos, as amigas, as confissões, as bebidas e o desejo. Ele recompensava minhas viagens me mandando postais diferentes a cada lugar que ia e eu ainda não conhecia, e vez por outra me escrevia a frase:

 Eu estive aqui antes de você. Mas eu sei que você virá aqui também.

        Não me lembro bem como começou e porquê. Acho que a gente se sentiu sozinho em algum momento da vida. A gente nunca falou disso. Eu não gosto de parecer fraca, tomada por algum sentimento maior do que eu. Eu não sei muito sobre ele, embora saiba muito sobre o que lhe aconteceu nos últimos meses. Mas, ainda assim, é um homem suficientemente inteligente para não se deixar apanhar de modo fácil. O sexo era sempre bom, o sexo parecia ser tudo antes do encontro mas depois só completava as conversas ao telefone, as mensagens de texto, os emails engraçados. Era só sexo, mas eu queria dizer a ele, agora, enquanto finjo dormir, que eu nunca acreditei que alguma coisa pode ser só sexo.
        Falar isso poderia ser romântico demais para alguém com uma vida como a minha. Morando sozinha e sem nenhuma ideia do que me acontecerá nos próximos meses, eu continuo fingindo dormir. Esse compromisso com as palavras, como se depois do eu te amo devesse vir logo um vou ficar contigo.   
       Agora, enquanto ouço o barulho de seu zíper se fechando, não sei se quero ir embora. Pelo menos hoje não. Mas essas coisas também tem seu preço. A porta se fecha e ele vai. Pela primeira vez, hoje, durmo de verdade e sonho um sonho em que a gente de novo não se conhece. É um parque de diversões e estamos na roda gigante, cada um num banco, sozinhos. Ele olha para trás, eu sorrio. O sonho acaba, eu acordo, cabeça girando. Pela primeira vez, ele não me escreve um bilhete.
         Acho que é um jeito também de dizer adeus. 

6 comentários:

Godo disse...

Lido.

Thá Silva disse...

Suas palavras sempre me tocam... Lindo!

Migh Danae disse...

Sua presença sempre me toca, linda!
Ouvindo o novo cd' de Lizz Wright, eu sou mais feliz.

Migh Danae disse...

E Godo, lido é significa "não gostei?"
Cheiro,

Godo disse...

Gostei sim, especialmente dos 2 últimos parágrafos.

Migh Danae disse...

Ufa! Melhor assim!