Você que me lê, me ajuda a nascer.

sexta-feira, setembro 02, 2011

Aos pedaços.

Aconteceu de novo. À hora do almoço, sento-me ao lado de um mocinho de cinco anos, conversamos às vezes quando nos encontramos pelos corredores. Ele é de outra turma e me cochicha

eu queria ser da sua sala

Não é a primeira vez que ele diz isso. Eu imagino os motivos. Pelo que ele pode observar das vezes que a gente se encontra, a turma com a qual eu passo a maior parte do tempo está sempre em polvorosa. Mas tem mais. A gente começa um papo, entrecortado porque vigiamos a inspetora que nos vigia, ela não pode nos ver conversando. Eu pergunto se a mãe dele é bonita como ele e ele começa:

minha mãe é preta e meu pai é branco

Como ele é bem escuro, eu pergunto se a mãe dele é preta como uma menininha bem pretinha que está a nossa frente. Ele faz que não com a cabeça e diz que a mãe dele é preta como ele. Eu acho difícil que o pai dele seja branco, mas continuamos o papo que ele começou e juntou mais gente para ouvir. A menina da frente diz

minha avó é preta, mas e daí? eu queria ser como ela, eu gosto dela mesmo assim

Estou mais interessada no mocinho porque ele não para de falar sobre sua família, apesar de ter captado a educação racista que ela também está recebendo. Com um ouvido ouço a menina, que vai falando de seu amor pela sua avó preta. Com o outro, ouço o mocinho mandando essa

quando eu nasci, sabia, eu era branco, depois eu me queimei (riso nervoso)! eu queria ser branco

Estou com um pedaço de carne na boca, engasgo, boca cheia de comida e olho cheio de água. Ele sorri pra mim e repete

eu queria ser branco porque ser branco é mais legal, né?

Eu pergunto


mas porque você quer ser branco? 

Ele continua sorrindo para mim um sorriso sem graça e eu não consigo disfarçar, dou uma fungada de lado e baixo os olhos porque ele me olha como se estivesse dizendo a coisa mais normal do mundo, ele, mocinho escuro de cinco anos. Como se tivesse plena certeza do que quer na vida, do que basta para ser feliz

eu queria ser branco, é mais bonito, você não acha?

Minha voz esganiçada diz um

você é tão lindo

E ele emenda, olhando pro prato e riscando-o com a colher, um tanto quanto insatisfeito, decepcionado, nada surpreso

minha família toda diz que eu sou lindo

Levantei mais rápido, deixei o prato na pia e saí andando pra sala das professoras. Pensei que ia conseguir me conter, me controlar. Mas foi demais pra mim. Ainda agora, choro quando lembro dos seus olhos brilhantes me segredando seu desejo mais profundo, certo de que teria a minha aprovação automática se, em sendo preto, tivesse o desejo de ser algo que nunca será. Era como se ele me dissesse

sei que não sou bonito nem posso ser amado e sei também como se consegue isso, e eu quero

Saí da sala das professoras, fui chorar no banheiro. Há quinze anos em escolas, hoje eu sinceramente não conseguir esperar para chorar em casa. Algumas pessoas viram e me abraçaram dizendo-me

não fica assim

Eu queria explicar que eu não estava "assim" por minha causa, mas por conta de um processo doloroso que se arrasta entre nós desde a época da escravização e a maior parte das pessoas não querem nem sequer discutir! Eu tentava explicar, mas eu chorava mais pensando nele, porque não era só ele. Mas eu estava assim por minha causa também. Lembrei da infância e de quantas vezes eu ouvi que meu cabelo não era bonito ou parecia "esquisita". Lembrei de que ainda hoje, isso acontece


Míghian é diferente
Ela parece uma bonequinha!
Você é relaxada (falando de minha aparência)
Seu cabelo é assim mas eu gosto dele


Cansei. Chorei voltando para casa, principalmente porque nesses últimos dois dias, tenho ouvido uma música de Negra Li que eu gosto muito. Há uma parte que diz:


Sou negra livre

Negra livre
Cheguei aqui a pé.
Para destoar
Para dissolver
Para despertar
Pra dizer

Pensem o que quiserem, mas não dá para deixar de escrever essas coisas aqui. São coisas que me tocam, como qualquer outro preconceito. De cor, de classe, de origem, de gênero.

Sangrando.





2 comentários:

Márcio Macedo disse...

Tenha fé e esperança nas crianças, elas vivem intensamente, crescem e nos surpreendem. A história é triste, mas não deixo de me encantar com algumas partes. Exemplo disso é essa frase dita pela garotinha negra: "minha avó é preta, mas e daí? eu queria ser como ela, eu gosto dela mesmo assim." Hilário e fofo! Uma vez peguei um ônibus em direção ao AP que morava com minha ex-namorada. Havia um casal sentado lado a lado em dois bancos. A mulher, sentava-se ao lado da janela e tinha um garoto negro em seu colo. Ele aparentava ter não mais que 4 anos. Ao lado dela, seu companheiro segurava uma garotinha que dormia. Ao passar pela praça Benedito Calixto, o garotinho e viu uma cena que não tive tempo de verificar do que se tratava, mas ele a qualificou de uma forma que nunca irei esquecer: "Mamãe, olha... Ninguém melece!"... Ao ouvir aquilo ri por dentro, crianças são sempre fofas...

Beijos!

Migh Danae disse...

Crianças são maravilhosas, o que estraga são os adultos tentando tranformá-las em adultos!
Tenho uma coleção de histórias de crianças, umas publicadas aqui...
Obrigada pela visita!