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sábado, junho 18, 2005

Crença e Fé.

Crença e Fé. Eu sempre acreditei em tudo que ele disse. Até daquela vez em que me disse que ia tomar formicida, só de brincadeira, depois de uma das nossas brigas. Acreditei tanto que, com a chave do apartamento dele em mãos, no horário de trabalho, vasculhei tudo para ver se havia algum indício de verdade naquela frase. Eu sempre acreditei, nas melhores mentiras, nas verdades mais fraquinhas. Lembro dele sempre pedindo para que os amigos não brincassem muito comigo, eu voltava pra casa perguntando o que era realmente verdade e o que era mentira, nunca sabia discernir e por muitas vezes havia chorado mortes que nunca aconteceram, celebrado casamentos que nunca nem começaram, feito planos de futuros sobrinhos de amigas inférteis, enfim. Chamavam-me de ingênua, quase burra de tão boba. Mas não era bem isso. Fui criada numa família muito religiosa, que me ensinou que as pessoas eram muito boas, só atentando para o contrário quando provas concretas me fossem apresentadas, o que, convenhamos, quase nunca ocorreu. Lembro-me de um caso ou outro em que duvidei da palavra de algumas pessoas, mas isso está num passado muito distante da minha vida e nem quero lembrar-me disso, pois mamãe já me alertou sobre as "exceções da regra", ou seja, esses casos só existem na verdade para que a regra de que todo mundo é realmente bom e verdadeiro prevaleça. E sempre foi assim, e sempre vai ser. Ele sabe disso, mas ri de mim. Às vezes se aproveita das minhas crenças para conseguir o que quer, pois eu mesma estava no mundo a serviço da verdade, ele assim comprovava. Não mentiria, não brincaria com coisas sérias, não saberia nunca discutir assuntos relevantes com aquele tom irônico que a maioria das pessoas coloca no fim das frases. Só que... Bem, só que... É quase impossível acreditar no que meus olhos viram essa semana. Ela é linda, a Sarah. Um espetáculo de mulher, aquelas de arrasar quarteirão. Trabalha com ele, mesmo elevador para subir e descer o prédio, mesma sala do café. Conversam o dia inteiro através do e-mail da firma. Eu sei, sim, eu sei, por que um dia lhe fiz uma surpresa aparecendo assim de repente numa tarde no escritório, e as mensagens não paravam de chegar à sua caixa, a tela minimizada, mas o barulhinho inconfundível das novas mensagens e a checagem antes de sair não me deixaram dúvidas. Por que eu fiz isso? Não deveria eu acreditar que ele estava realmente trabalhando no escritório? Não é isso que acontece lá? Mamãe sempre me alertou para o fato de que as dúvidas empanam o brilho da verdade. E esse era o problema de ter visto a Sarah, o mulherão. Minhas verdades já não eram as mesmas, e eu não poderia crer que ele conseguiria trabalhar ao lado dela. Eu estava quase me sentindo mal por duvidar. Sim, a dúvida é a raiz de todo o mal. E se ela foi criada por mim, eu estava sim impregnada de mal por todos os poros. Isso era ruim, fazia de mim uma pessoa como todas as outras: descrentes, injustas e infelizes. Mas o diabo é que eu não consegui mais dormir a noite inteira pensando nisso. Pensando nele. Mas nele com ela. Com Sarah. Que recebeu esse nome por causa do pai que adorava o Dylan. Isso ele me contou, assim, como quem fala de alguém muito próximo. De algum modo, eles eram sim, próximos. As mesas ficavam uns 1,5 m de distância. Mas eu acreditava nele, até quando dormia. Dessa vez... Bem, dessa vez era diferente. Meti na cabeça de não poderia acreditar em Sarah, e lembrei-me que mamãe havia perdido papai cedo demais para incluir essa exceção em suas regras. Mamãe não teve de se preocupar com Sarahs. Papai morreu com cirrose hepática e impotente aos 42 anos. Eles tinham 23 anos de casados e apenas dois que moravam numa cidade com mais de 10 casas, e, nessa época, ele já não era por assim dizer um cara empenhado em suas atividades de macho. Supus então que ela se conhecesse Sarah, no mesmo momento abriria uma brecha em suas colocações cristalinas sobre crença e fé. Contratei um detetive. Ele iria me dar detalhes após 72 horas de serviço intenso. Combinamos o valor e local de entrega das provas, ou, na melhor das hipóteses, da falta delas. Os três dias passaram lentos, com ele me vendo fumar cigarros que nunca havia fumado e indo dormir quase sempre depois do jornal da meia-noite, mesmo odiando a jornalista que me lembrava sua ex-namorada. No último dia, sonhei com mamãe. Ela me olhava com os olhos tristes, e me dizia baixinho: - Filha, mamãe nunca duvidou de ninguém. Nem de você. Enfim, o dia chegou. O detetive me ligou. Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, gritei: - Não, não quero saber. De nada. Eu sei que você não tem prova nenhuma contra essa moça de bem. Sinto-me uma víbora só por imaginar que um dia eu... E desliguei. Na cara dele. Pra quê mudar meus conceitos? Afinal, passei 34 anos vivendo desse jeito, e era, por assim dizer, bem mais feliz que a maioria. Além disso, ele gostava de mim. Pelo menos, ontem, quando eu cheguei em casa, no horário do jornal, percebi que ele tinha instalado uma TV a cabo, pra não que eu não precisasse mais ver o jornal com a jornalista metida a ex-namorada.

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