Você que me lê, me ajuda a nascer.

domingo, novembro 04, 2007

Sobre o passado.

Acordei tarde, gosto estranho na boca. O sol ia alto lá depois das janelas fechadas, senti o mormaço aqui dentro. Dormi em casa, na casa que morei até os meus 18 anos, aqui é só a mãe e uma gata agora. Lembrava dele, do bar, do aperitivo sem graça e da cachaça no bar do lado. Passava das duas da manhã e a gente ainda ali, colega do tempo da faculdade, mesmo curso, coisa que ele me lembrou logo de cara, não, eu não lembrava disso, nem mesmo depois do sexo, mas eu acho que me lembraria de um cara enorme daquele andando nos corredores da universidade, um cara enorme um tanto nerd e cheio de sonhos, era o cara por quem eu morreria e voltaria à vida já naquela época, o cara por quem eu me apaixonaria perdidamente. Naqueles tempos também eu era nerd e cheia de sonhos, talvez por isso nunca houvesse notado o moço, vai saber. Conversamos muito antes de transar no carro dele e eu já o queria só pra mim, ele falando sobre os reinos esquecidos do Zimbábue, sobre Benin e Daomé e eu imaginando ele pondo a toalha no lugar e guardando os sapatos, eu sorria mas não era daquele papo, sorria por que já me via caindo naquela merda de abismo chamada amor, chamada solidão. Mesmo sozinha há tantos anos continuava exigente, eu queria aquele homem sem erros, de óculos com a perna quebrada e que não falava pouco. Me agarrava como se fosse a última coisa que quisesse fazer na vida, como se estivesse esperando por mim durante todos aqueles anos, mas era só impressão minha, eu sabia, era uma impressão para me animar, aquele gosto estranho na boca continuava. Um gosto estranho para um dia estranho, quase cinza. Eu voltei aqui só para buscar umas coisas, documentos e fotos velhas, meu quarto agora servia de depósito, de meu só uma cama e um baú, minha mãe odeia o passado, diz que cheira mal e não há produto de limpeza que dê jeito. Voltei e já precisava ir, não voltei para me apaixonar. Não posso ficar, estou amarrada numa cidade longe daqui, cidade que não é minha mas que é onde agora eu me viro pagando contas e correndo. Não devo ficar, mas pensei em ligar para cancelar o vôo que vai depois de amanhã, alegar um mal-estar com a tal comida típica da cidade natal e pedir uns dias à chefe, ficar aqui. Levantei da cama. Me animei em procurar entre as fotos velhas, aquelas que eu tinha separado para jogar fora, por que não tinham graça, tinham enquadramento ruim ou eram tempos que eu queria esquecer. Mas agora queria ver o que tinha ali do meu tempo de estudante, algum indício daquele moço enorme, quem sabe. Sentei novamente. Encontrei fotos de um último encontro, uma delas foto mal-feita em que só um pedaço de mim aparecia, o resto era multidão. Mas ele estava lá inteiro, dava pra saber que era ele, mesmo cabelo, era ele morando ali no espaço de uma foto que era minha, no mesmo espaço que eu. Mesmo espaço, não no mesmo tempo. Eu não me lembro. Acho que não me lembro nem do que eu era nem o que eu queria naquela época, parece que faz muito tempo mas na verdade foi ontem, eu ainda não cresci e continuo sem saber de muitas coisas, e talvez por isso eu tenha ido embora. O quarto, a casa e a cidade ficaram pequenas para mim, pequenas para a minha desesperança de continuar ali, tentando ser feliz do mesmo jeito que todas as pessoas que eu conhecia. Achava que eu devia fazer algo novo, acreditava que na vida a gente tinha que pelo menos fazer alguma coisa de grande e muito importante, saí correndo atrás disso, mas até agora, só arrumei solidão. Engraçado, na foto ele também parecia me olhar, coisa de doida agora, mas ele estava mesmo olhando na minha direção, olhando na direção daquele pedaço de corpo estático na foto, vai entender. Deitei e olhei pro teto, naquele quarto que tanto me viu chorar nos tempos de faculdade, por me sentir a mais feia da minha classe, comigo as coisas sempre aconteciam depois que tinha acontecido pra todo mundo, todos os traumas de adolescência eu senti também na faculdade, eu nunca achava que estavam olhando pra mim ou que queriam falar comigo por que eu era bonita ou coisa parecida, tratei de enfiar a cara nos livros e fazer o tipo cult-de-óculos-moderninho; desconfio que sempre tive amigas e mais amigos por que fazia as atividades em grupo colocando o nome de metade da sala no trabalho, mas aí eu penso, fazer o quê, a gente sempre paga alguma coisa para ser aceita em qualquer lugar que se queira ir ou estar, nesse caso me sentia feliz de poder pagar com a única coisa que eu tinha que eram as atividades extra-classe, assim o pessoal tinha mais tempo pra namorar, sair ou dormir, além de serem todos meus amigos e minhas amigas, rirem de algumas das minhas piadas e não me chamarem de esquisita por vestir a mesma camiseta durante os cinco anos de curso. Fechei os olhos. Minhas idéias estavam em trânsito, meu corpo flutuando naquele lugar, minhas responsabilidades lá fora, bem longe, depois das janelas e meu coração esbaforido, pronto pra sair pela boca e cair no colo do moço, assim que o visse de novo. O celular estava à mão. O número dele também. Naqueles cinco anos longe de casa, ele me encontrou virtualmente, trocamos números, nunca soube pra quê. Mas agora eu deveria ligar. Chamou duas vezes. Ele respondeu falando meu velho apelido, sem nenhum “oi” ou “olá”. Tentei combinar palavras engraçadas para montar assim umas frases de efeito, daquelas que só pessoas inteligentes conseguem formular na hora da precisão, e perdi o chão quando ele me disse que eu já havia dito bobagens demais na noite anterior. Silêncios. “Mas eu gosto de você”. Silêncio de um lado, respiração ofegante do outro (aqui na minha cidade natal, é ele quem corre). “Apesar de tudo, eu gosto de você, preta”. Falou isso como se não fosse nada, eu gosto de você e é isso, não precisamos de mais nada aqui, tá tudo bem, suporto suas bobagens e sexo bêbado no primeiro dia, como o sol aí fora e você teima em não ver, eu gosto e só, sem adjetivos, penduricalho da gramática que só atrapalha a ação do verbo. Talvez minha impressão tivesse sentido, talvez nossas vidas já fossem uma da outra e estivessem apenas nos esperando nessa cidade, para encontrarem-se de novo, para não se perderem no céu azul, queriam se encontrar em terra firme, olhando nos olhos, sorrindo sorrisos. Agora parecia me lembrar de tudo, até o motivo do gosto estranho na boca, saí correndo daquele último beijo ontem, não tinha mais nada a fazer, mais um olhar dele e era eu dizendo sim, vou casar, ter filhos, uma casinha com varanda, essas bobagens que dizem que toda mulher sonha em ter quando chegam assim na minha idade. Desliguei, desligamos. Voltei a dormir, agora o sono é para descansar de amar, vou abrir os olhos só pra sonhar acordada e brincar de ser feliz, amanhã eu cancelo o vôo. Por hoje não posso mais, alguém me gosta e não preciso entender por quê.

Nenhum comentário: