Você que me lê, me ajuda a nascer.
sexta-feira, novembro 23, 2007
Em trânsito.
Gosto de viajar, e mais ainda, gosto de estar em trânsito. Percebi isso quando me buscaram do aeroporto na última vez: quando cheguei no meu destino, torcia para o carro dar mais umas voltas, não queria parar, gosto mais do trânsito do que da pousada, gosto da idéia de partir e chegar, de chegar para arrumar as malas de novo, gosto gosto.
Mas ontem, quando parei para namorar alguém, percebi como faz bem ficar olhando nos olhos de alguém, sorrir olhando alguém sorrir, não será isso namoro, o moço me disse
faz tempo que eu não namoro também, é estranho aqui com você
e eu sei que ele beija tantas bocas por aí, e eu que beijo outras tantas, mas namorar é diferente, é parar para olhar e nesse olhar deixar todas as coisas acontecerem, bom perder todo o resto do mundo nesse tempo de namoro. Quando sentir muita falta disso, sei que vou ter que dar um jeito na minha vida. E o trânsito vai ser igual via láctea, vou me perder nos carros num trânsito de sexta-feira no centro da cidade grande, carros buzinando e meu tempo parado, dentro do carro do olho de um certo moço.
Andando pelo Comércio, Cidade Baixa em Salvador, parei para chupar manga. Numa barraquinha, meio da feira, perguntei pro moço se poderia descascar pra mim, queria chupar manga ali mesmo, adoro cheiro de manga, deve ter sido por isso que amei quando me cantaram dizendo que minha voz parecia manga madura, deve ser por isso que quando vou no mercado sempre compro suco com néctar de manga, adoro essa palavra. O moço devagarzinho lavou, descascou a tal da fruta, tempo suficiente para paquerar e ser paquerada pelos moços na lanchonete, eles também devagarzinho iam trabalhando e conversando comigo, me dizendo que as mulheres, ah, as mulheres, essas não queriam mais saber deles, eu também me lamentava, ah, esses homens, tão malvados...
Pierre Verger e suas fotos de gente, porta-retratos da vida. Uma amiga visita a Casa de Pierre em Salvador comigo (pequenita, assim como a praça Castro Alves), me diz
velhos têm mapas no rosto
E eu disse, escreve isso, caçamba, escreve, escreve, por que eu queria ter pensado isso, todas aquelas marcas que de perto parecem chão do agreste, sertão iluminado de estrelas de tempos antanhos, cada sulco é pedaço de terra que leva e conta histórias deste mundo e de outros, ah, Mia Couto, o que estás a fazer comigo? Leio-te e descubro que não sei nadita da escrita, tu é rei do lugar onde fala, só posso ler-te e embevecer, só posso suspirar para nunca morrer sem ter bebido todas as tuas palavras, néctar de manga. Madura.
Então eu vejo que é isso mesmo que eu quero fazer antes de morrer, passar o resto da vida que me falta escrevendo, escrevendo o tempo todo, todo, quer ver?
Eu estava no aeroporto em Salvador, e me pus a escrevinhar, uma coisa mais ou menos assim
estava aqui sentada, olhando para esses moços e essas moças que estão a limpar o saguão do aeroporto. é madrugada agora. conversam alto, riem, acham graça. são todos e todas negros e negras. a única branca é a supervisora, única sentada enquanto todas e todos os e as outros e outras estão em pé, lavando o chão. também é a única que não sorri, dá ordens. parece não gostar muito daquela festa toda, não deveriam estar macambúzios/as e tristonhos/as por terem que lavar a sujeira dos/as outros/as essa hora da madruga? agualusa está é certo quando fala que festa é jeito de protestar.
olho pro outro lado do saguão, já limpo. brancas e brancos tomam café. eu sou a única negra que vai viajar de avião, mesmo salvador sendo uma cidade majoritariamente negra. mas nei lopes já disse isso, não quero me estender.
parei de observá-los/as. poderiam ficam sem jeito e parar com as gracinhas. me pediram para mudar de lugar, iam lavar a minha mesa, eu sorri, tentei puxar papo. queria entrar na diversão e quem sabe, tomar uma cerveja na praia qualquer dia com todas e todos eles e elas. deixo pra lá. eles e elas são metidos e metidas. não ligam pra mim. voltam a sorrir, a trabalhar.
E eu escrevo e penso tantas coisas como essas, e eu esqueço e eu tenho preguiça de escrever aqui, não sei por que, passa batido. Por isso, se algum dia eu for morrer, quero morrer na praia, de tardinha, escrevinhando qualquer coisa, um laptop na mão e idéias na cabeça.
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