Você que me lê, me ajuda a nascer.

quarta-feira, outubro 20, 2021

Sabotagem acadêmica.

Todos os semestres, ouço as mesmas coisas.

Eu não consigo estudar

Eu não consigo me concentrar

Eu não consigo ler todos os dias

Eu não vou conseguir escrever esse tanto

E fico pensando porque é que a gente diz assim, porque é que a gente não consegue. Fiquei me perguntando porque muitas vezes procrastinamos de fazer coisas que precisamos, que devemos, que queremos, que são importantes para a gente. Conversando com uma pessoa amada depois de mais uma aula, fiquei pensando que nós não nos achamos que podemos estudar. Separar tempo e espaço para isso parece artigo de luxo, de quem faz parte de outra raça e classe social. A gente não se vê ali, em todos os sentidos. Todo mundo diz isso de teatro de classe média, de restaurante fino e até mesmo da universidade, mas não conseguimos compreender que esse "eu não caibo ali" aparece em todo lugar, não é só nos lugares físicos que a gente não se vê numa sociedade embranquecida. Nossa sabotagem com a gente tem morada também dentro da gente, dentro de casa, com nosso tempo e nossas coisas, é assim que ela passa a fazer parte da nossa vida.

É doloroso, não é mesmo? Perceber que nos dizemos não mesmo quando podemos encontrar um jeito de dizer sim porque nos sentimos aprisionados pelos lugares que não nos cabe, física e psiquicamente. A gente briga com o mundo à vezes para ter o direto a achar que pode, a gente sempre dá um jeito (mas cansa muito) e continua vivo, mas a gente não se permite ordenar muito a vida, porque fazer isso significa pensar sobre isso e pensar sobre algo a que não nos vemos com direito parece... ilegal. Ilegal para nós, pessoas negras que passamos muito tempo da vida ocupando nosso tempo com coisas que nos mandavam fazer ou esperando sermos mandadas. Precisávamos estar ali, mas não para nós, mas sempre esperando ordens. E assim, um dia inteiro de prontidão e cansaço se passava. O que mudou? Me diga você que me lê.

A gente atropela e cansa mais, porque organizar e planejar, sentir prazer nas coisas miúdas sendo feitas na nossa vida acadêmica parece que não é para a gente, não. Aí a gente não quer deixar de ser a gente e não, isso não é a gente, sentar no domingo à noite e organizar uma agenda de estudos para a semana. Isso parece fora de nossa realidade, aí a gente não faz e, ao não fazer, a gente passa a semana se atropelando e "viu, que essa coisa de estudar não é para mim?"

A gente fica brigando com a gente mesmo e só quem ganha não somos nós. A gente pode sim, organizar tempo e espaço para estudar. Isso não é privilégio, é direito. É o que faz dar certo. Não é chique nem nada, é simples e prático, é o que a gente precisa para conseguir o que a gente quer sem sofrimento. A gente pode sim, pensar em tempos de brincar e lazer, porque a gente é pessoa, lembra? 

Não estou dizendo que "ah, é só se organizar e tudo se resolve?". Não mesmo. Eu nem acho que as coisas "se resolvem". Estou falando de uma das muitas dimensões que temos de vencer para conseguir fazer nossas coisas e uma delas é ter a certeza que educação é direito, então eu posso sim organizar meu tempo, pelo menos em alguma medida. Uma amiga perguntou "como uma mãe estuda?" e a gente ficou pensando que não tem como fazer isso sem rede de apoio. Aqui, não estou dizendo que se organizar resolve tudo, mas ter certeza que, sendo mães, podemos estudar, nos faz não nos sentirmos mal quando alguém toma conta da nossa cria ou quando ela fica com o pai. Lembro sempre da minha tia, que quando meu sobrinho era pequeno, deixava ele com o pai, que era separado dela, para sair com as amigas e era execrada pela família. Hoje pai e filho convivem muito bem, apesar de minha tia quase nem ver o ex-marido. Eu estou falando em acreditar que temos direito como um dos princípios para reger nossa vida acadêmica, não como resolução de todos os problemas do mundo.

No final do semestre passado ouvi emocionada uma estudante contando que tinha começado a acordar 20 minutos mais cedo para ler. E um dia, antes do filho acordar, ela se pegou chorando lágrimas grossas em cima do livro pensando que passou tanto tempo se privando de sentir aquele prazer porque achava que não poderia. Ela chorava, mas também ria, porque descobriu que precisava de pouco para se sentir forte e inteira outra vez. 

Por isso, eu repito. A gente PODE, sim. A gente precisa se libertar desse jugo de que temos de passar a vida correndo ou sofrendo. Isso não é de nossa natureza, não, isso se chama opressão. Vamos exercitar liberdade e organizar nossa a partir daquilo que nos traz prazer também. Vamos nos permitir o encontro com a delícia que é a vida, o amor e o prazer. 

2 comentários:

Geisagiraldezedu@gmail disse...

EmPODEmento é um processo demorado as vezes

Migh Danae disse...

Melhor comentário do blog em 2021. Gosto mais de empodemento do que empoderamento. Rs