Você que me lê, me ajuda a nascer.

quinta-feira, agosto 13, 2020

Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves.

 

Conheci este livro há cerca de seis anos, quando ele chegou até mim em PDF. Não sabia do que se tratava, não havia lido nada nada nada sobre ele e quando comecei a ler, não gostei da apresentação (não havia capa nem orelha para guiar minha leitura), deixei-o de lado. O que eu não gostei? À época, eu tinha muita irritação com romances históricos, com literatura que romanceavam histórias que haviam acontecido com a gente, população negra no Brasil, porque eu achava que nossa historiografia era ainda muito frágil para essa coisa toda, eu achava que ainda não tínhamos como fazer isso no Brasil sem nos colocar no lugar em que deveríamos estar, como pessoas que fizeram história e ciência. Para mim, esse livros embotavam a percepção das pessoas sobre o que realmente aconteceu neste país, já que muitas partes de nossa história ainda são vistas como invenção. Há quem diga, por exemplo, que Luísa Mahin não existiu. Livros como esse, na minha cabeça de 2014, não ajudavam em nada. 

Uma birra mas, como toda birra, merece atenção.

Foi aí que lá por 2018 eu comecei a perceber o barulho que o livro fazia, as pessoas comentando, eu ainda sem saber se era literatura ou pesquisa, não havia procurado saber nada do livro; foi por esse tempo aí que eu entendi que era literatura escrita a partir de pesquisas e leituras de livros sobre a história do Brasil, aí pensei, vou ler para ver se gosto. E gostei de descobrir que gosto de livros grandes, porque com estes a gente pega uma amizade, uma coisa de familiaridade, quando ele acabou, fiquei uns dias me sentindo órfã, com vontade de ter uma história longa me acompanhando há um mês para chamar de amiga, lá vou eu fazer as pazes com Chimamanda e ler Americanah, vou sim.  

Li o livro em um mês, porque a leitura é fácil e se você deixar, ela acontece. Não muito por beleza, digo, não há aquela coisa arrebatadora de muitos dos livros que eu leio (Ruby, de Cinthia Bond, por exemplo, me pegou de jeito, e olha que ainda nem terminei), mas há qualidade na escrita que não te faz parar de ler por umas trinta ou quarenta páginas. Ainda assim, a história, a meu ver, não é a mais fantástica de todas e a personagem principal, se não merece julgamento, nem de longe pode ser considerada uma representante das mulheres negras brasileiras ou das muitas mulheres de Uidá que aportaram no Brasil na época da escravização. 

Digo isso porque Kehinde não me fez apaixonar por ela. Admiro sua força e coragem, óbvio, ao mesmo tempo que poderia questionar suas escolhas e caminhos. Se não o faço, é porque acho que personagens, assim como pessoas, precisam ser o que elas são. O que me incomoda é ouvir as pessoas dizerem que esse livro me representa ou poderia ser visto como O livro sobre a nossa história. Não concordo com isso. 

Eu poderia escrever muitas das passagens que me fizeram perguntar "mas porque é que as pessoas colocam esse livro nesse lugar?", mas não farei isso (porque são muitas). Escolherei aqui apenas uma das coisas que incomodou-me deveras e que não entendo apenas como uma escolha da personagem, mas algo que diz respeito a uma escolha política. Porque é que Kehinde, quando volta à Uidá, chama a população que lá vive de selvagem? Porque é que ela mesma se deixa chamar sinhá? Porque que é que ela volta e comercializa armas, as armas que fazem as guerras que fazem escravizados/as e diz que a escravização "não é problema dela" e "aconteceria de qualquer jeito". Não precisaria ser assim, e é aqui que para mim entram as escolhas de quem escreve. 

"Isso tudo aconteceu", algumas pessoas dizem. Está bem, mas se "isso tudo aconteceu" é o motivo para achar que essa história vale a pena ser contada como está sendo, eu deveria achar que muitos são os livros da minha vida. Nunca foi porque alguém conta uma coisa que dizem que aconteceu que um livro vira O livro. É como conta, como escolhe, como imagina, como sonha... são essas coisas que faz a gente amar um livro. Não é porque aconteceu, mas como ela conta o que dizem que aconteceu que faz a gente brilhar o olho. Ou não.

A história deste romance não precisava ser baseada apenas naquilo que disseram sobre nós, mas também naquilo que podemos dizer sobre a gente. Se há algum livro de história do Brasil que informa que "documentos mostram assim que, africanas retornadas à África preferiam ser consideradas brasileiras e chamavam seus conterrâneos de selvagens", eu poderia usar a força que há nas palavras e reescrever a história; numa aula com professor Wilson Mattos, ele me disse que podemos mudar o passado, numa alusão à ideia de que podemos olhar para aquilo que nos contaram a partir de outras lentes e enxergar novas coisas. Sankofa também é isso, em um sentido filosófico. Pareceu-me assim, ao final do livro que, nos momentos em que a literatura poderia ser usada para me salvar, ela desaparece por completo e é aí que, para mim, o livro perdeu todo o sabor. 

O nome do livro, fiquei pensando e pensando. Lá pela página 915, ela cita o motivo do nome, mas eu ainda acho que deveria estar na orelha, porque sem saber de nada, eu não sei se gosto do nome, um defeito de cor. Era defeito de cor ser negra no tempo que a história se passa, mas eu não gosto de me conectar com essa história a partir dessa lógica, uma lógica que não é a minha e foi a mim imposta, eu não gosto, sempre me incomodou esse nome. 

Eu recomendo que as pessoas leiam todos os livros que quiserem. Eu não acho que ele não deve ser lido, só não vejo beleza onde as pessoas veem e nem representatividade. 

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá!
Li sua resenha e achei interessante, ou melhor, diferente e corajosa. Ou corajosamente diferente.
Eu acho que discordo. É provável.
Relerei com sua lente, só para reler e não para concordar.
O blog é bom.

Migh Danae disse...

Que pena que não sei seu nome. Eu tenho de escrever mais, com as passagens que não gostei do livro. Sabe o que eu gostei do livro? Eu confirmei que eu realmente gosto de livros grandes, maiores, com muitas páginas, a gente se envolve mais, livros curtos, até 300 páginas não dá isso na gente, essa familiaridade... eu gosto também de algumas partes do livro, e preciso registrar isso. Qual? Gosto quando ela está no Rio de Janeiro, do amor com Piripiri e também do amor com Francisco e Lourenço (só não entendo porque ela só diz ter amado Alberto). Volta aqui.
O blog é bom, as pessoas que leem, muito melhor.
Um abraço, Míghian