Numa das viagens à Belém, fui à ilha de Marajó. Conheci um artesão que fazia desenhos marajoara numa cerâmica linda. Fiquei alguns minutos olhando, hipnotizada, para o desenho que se formava naquela pequena peça à minha frente. Era uma oficina simples montada numa pequena palhoça. As pessoas passavam, perguntavam preço, pechinchavam e eu ali, parada, em frente a dois pequenos potinhos de cerâmica marrom-clara com grafismos brancos. Era isso.
Não conseguia tirar os olhos daquela peça que, pouco a pouco, encheu meus olhos de lágrima e meu coração de um sentimento entre amor e paz. Minha cabeça vagueou pela imagem dele fazendo aquela peça, pequena e frágil, com linhas mais frágeis ainda, tudo tão simples. Um homem da ilha, com uma arte que me tocou tão profundamente, de uma maneira que muitas outras coisas que vi não conseguiram. Emocionei-me porque para mim era tão profundo ver os grafismos não tão lineares, a cerâmica interferindo no desenho, a cor não uniforme, pensei na vida, eu ali, a três horas de distância do pedaço do continente, longe de tudo mas perto de mim.
Pensei na minha vida, na viagem, nas pessoas que estavam comigo. Foi uma das viagens mais lindas que fiz. Nunca vou esquecer aquelas horas em que passávamos andando em meio à ilha, búfalos sentados no meio da estrada, nós três rindo e inventando piadas, a vida perfeita demais, demais. Uma vida perfeita: acordar de biquini, passar o dia de biquini, ir à praia, voltar, comer peixe, dormir, acordar, bater perna, ver o mar à noite. Vida perfeita. Pensei o quanto a vida é doce e leve, é simples e pequena, mas também nos dá essa sensação enorme de lindeza, como aquela cerâmica aqui, feita por mãos que viveram uma vida.
Depois de muito tempo olhando, olhando, comprei duas daquelas peças e trouxe para casa. Eu não gosto de comprar lembranças, mas essa foi diferente demais, mexeu comigo de um jeito especial. Eu nunca compro para mim. É sempre para minha mãe. Ela é quem gosta de ter essas lembranças de viagem, de todos os lugares que vou, acho que tem alguma coisa na casa dela. Uma não, no mínimo duas, como é a recomendação.
Olho para elas hoje tentando evocar essa sensação que tive ao comprá-las, não é que seja a mesma coisa, mas é sim que eu tenho ainda essas epifanias. É diferente, elas estão ali, juntas com todas as outras coisas que comprei nas outras tantas viagens, na casa de minha mãe, seguras. Ainda assim, olho para elas e lembro de como foi bom tudo que passei na viagem e agradeço, em silêncio, a grandeza que é não ter medo de viver.
Um dia, quando cheguei em casa, percebi que uma delas estava colada, mainha me explicou que ela havia partido e ela, como sempre, tentou colar de um jeito que ficasse imperceptível. Eu vi, e aí voltou toda aquela emoção de olhar para uma peça artística e me lembrar da vida, da fragilidade que é estar vivo, da força que é continuar.
Às vezes sinto meu coração como essa cerâmica de Marajó também. Pequeno, simples e frágil, quebrado em pedaços, colado. Ou mais, para além disso. Às vezes sinto como se ele tivesse sido esmagado e virado pó, com todos os sentimentos que eu deixei entrar nele, com tudo que já senti. É uma sensação que dói e que revela muito de mim para mim mesma, há sensações que penso que nunca sentiria; quero hoje em dia mais caramujo que borboleta, quero ficar na casa que estou fazendo para viver dentro de mim, mais e mais.
Sinto-me pequenina, frágil. Com vontade de me esconder do mundo inteiro. Isso tem acontecido quando algumas pessoas me dizem coisas que me fazer sentir desconfiança, quando lembro que não quero ter medo de viver e acreditar, deixar acontecer. Uma sensação de que não, a vida não tem volta e eu vou ter que aprender a viver com o que já foi, com tudo o que me permiti viver e o que não quis também, porque não dá para escolher tudo o que vem quando você escolhe viver.
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