Eu não falo bem inglês. Há mais ou menos um ano, eu encasquetei que eu deveria aprender pelo menos a ler em inglês, pela importância que tinha para minhas aulas de pós-graduação.
Eu tinha uma péssima relação com a língua e já falei disso aqui. Mas comecei a me familiarizar, alguns namorados e amigas me ajudaram a querer falar um pouco mais e... agora, comecei a conseguir ler alguns textos em inglês e comecei a me surpreender. Em primeiro lugar, porque alguns textos que eu considerava possuir alguma informação valiosa, não passam de textos muito ruins, que em português eu nem me daria o luxo de ler além do resumo. Alguns textos em inglês, muito atuais por sinal, escrevem como a se a realidade fosse daquele jeito – por exemplo, ao estudar crianças de 03 anos, a autora diz de maneira imperativa: “As crianças de 03 anos não sabem isso ou sabem aquilo” – algo que em textos brasileiros tem sido execrado há muito tempo. Eu particularmente tenho dificuldade em gostar de textos assim, mas talvez esse seja um problema da língua, me expliquem os tradutores. Em segundo, porque percebi que nós não estamos produzindo nada abaixo ou aquém do que muita gente que escreve em inglês tem feito e, inclusive, ao ver muito dos nossos problemas de análise e interpretação em outra língua, senti que não perdi tanto. Aliás, a gente tá sintonizada com essa galera até porque, assim como eu agora, muita gente já lê inglês faz tempo.
Minha área de pesquisa não tem uma vasta produção em inglês. Assim como em espanhol, português e italiano, poucos são os livros sobre infância e relações raciais escritos em inglês, com uma perspectiva que tenha relação com o meu trabalho atual. Não estou dizendo que não existem livros interessantes. Claro que há, mas eles também existem no Brasil e para mim, me servem mais, porque alguns partem do ponto de vista que eu pesquiso. Ler em inglês só me fez confirmar que saber inglês não é incondicionalmente importante para minha produção "intelectual" (inclusive as autoras que li em inglês mais bacanas são as que dizem que devemos olhar mais para nós mesmas!). Hoje, eu tenho à minha disposição mais material pra ler – o que inclui muita porcaria – mas talvez isso só me faça ter mais problemas para eleger que caminho seguir. Seria ótimo poder saber mais para escolher melhor mas, às vezes, isso é inviável em quatro anos.
Mas aí me dizem, ah, a internacionalização. Ela é feita em inglês e é importante que mais pessoas saibam mais que você está fazendo. Eu concordo em parte com isso. Para mim, só é importante que mais gente saiba o que eu estou fazendo se não for para que o estudo que eu faço vire “regra” ou uma generalização de determinado fenômeno ou grupo social. Não quero escrever para dizer que é como eu sei, escrevo para entender as coisas, é isso. Desse modo, pensar que a internacionalização por si só justifica esse poder conferido ao inglês é uma resposta muito superficial à questão que, no Brasil, envolve relações de poder, acesso e oportunidade.
Sou a favor da internacionalização, mas eu nunca entendi porque é que nas universidades não há um investimento pesado em áreas de tradução para o inglês, já que faz parte do tal compromisso com a sociedade a coisa da divulgação. Todos os departamentos deveriam ter sua secretaria de tradução, com gente trabalhando para botar o bloco da universidade na rua, garantindo assim que tanto a professora massa que sabe muito mas não teve acesso ao inglês desde criança seja estimulada a escrever, assim aquelas pessoas que sabem muito o inglês. Aproveito para falar que os congressos internacionais precisam de tradutores, ponto. A gente paga um absurdo nesses eventos, mas se talvez houvessem secretaria de tradução, estas também pudessem colaborar com os congressos. Mas taí. A universidade não se ocupa disso e favorece o que eu chamo aqui de “o poder da tradução”.
Sim, há um valor agregado – e ele é alto – para as pessoas quem sabem inglês. Não qualquer outra língua, mas inglês, visto que ela é tida por muita gente como a língua universal. Eu prefiro chamar de a língua do mundo do trabalho. As pessoas que sabem inglês acabam sendo beneficiadas apenas por saberem inglês. A gente quem mais facilmente tem acesso ao inglês no Brasil pertence a um certo grupo de classe média e alta que estudam em escolas bilíngues ou pagam cursos particulares às crianças desde a tenra idade, ou mesmo aqueles que, casados e casadas com gringos, falam com seus filhos e filhas em inglês desde que eles nascem, porque sabem o poder que há em saber inglês. Não, eu não estou desmerecendo as pessoas que são pobres e correm atrás e acabam aprendendo de algum jeito. Eu acho isso massa, mas eu estou dizendo que essas pessoas tem que cortar um dobrado para aprender um tipo de conhecimento super valorizado em nosso país,
Saber inglês e o poder que isso tem, isso não é novidade aqui. O que eu chamo atenção é como, na universidade, as pessoas que sabem inglês muita vezes não tem mais nada a dizer além da tradução. Elas conseguem se sobressair em qualquer lugar porque detém o poder da tradução, o que faz com que muita gente vire refémdo que elas dizem. Certas vezes até mesmo professoras e professores de longa data que não dominam o idioma acabam por, por necessidade mesmo, favorecer quem fala e entende bem o inglês! O poder da tradução acaba por colaborar para que ela realmente acredite que apenas com ele vai conseguir o que deseja, já que muitos cursos de pós-graduação tem peneirado os/as estudantes a partir do conhecimento de uma língua e não a partir dos projetos de pesquisa. Não preciso nem citar quais os programas que fazem isso, basta abrir os editais dos processos seletivos para entrada nos mestrados e doutorados para ver a penca de programas que colocam o domínio da língua como etapa eliminatória. Muitas vezes, uma enxurrada de bons projetos vão embora nessa levada, mas a universidade não parece querer saber como resolver isso.
O sistema todo é tão perverso que faz com quem não domine o inglês diga sim para textos em inglês e simplesmente passe todo o semestre ignorando o texto, sem assumir nem para si mesmo que não entende patavinas do que está escrito. Claro que num espaço tão excludente como a universidade, as pessoas morrem de vergonha de dizer que não leem - eu mesma, nas primeiras vezes em que fui perguntada, disse que sim! -, mas o que mais deprime são pessoas que, mesmo não lendo inglês, aceitam seminários com textos em inglês - ou francês, muitas vezes! - sem nada dizer ao professor e nem ao colega do seminário, que pode muito bem ajudar com a tradução! Não é vergonha não saber inglês. Se você não sabe, provavelmente faz parte de um grupo que não teve acesso a esse conhecimento e quem deveria ter vergonha disso somos todos nós, uma sociedade que ainda não conseguiu oportunizar a todas as pessoas a mesma educação. Mas eu entendo que é difícil dizer não, eu não sei ler em inglês, quando às vezes até o professor também lê mal mas mesmo assim, põe o texto pra debate (lendo uma tradução que ele tem de algum amigo da época da faculdade).
O ponto central desta questão diz respeito a algo que eu considero mais grave do que mentir que entende inglês (considerando que a mentira não começa no/a estudante, mas sim no sistema, que permite certas aberrações em torno da língua): agora, mais do que antes, quando eu não lia nada em inglês, tenho ido para eventos e reuniões em que as pessoas que sabem inglês precisam falar sobre um texto e tudo o que elas fazem é apenas resumir a ideia central, coisa que aprendi na oitava série (sim, eu aprendi a resumir na oitava série, numa escola pública num bairro de periferia em Salvador, com uma professora branca que elogiava meus textos), mas não há críticas ao texto, não há relações com outros textos. Muitas vezes, não conhecem nem o trabalho das autoras, é só o texto ali, seco, sem nem um gole d'água. Um texto que, sem entendermos o contexto – político, social – de sua produção, periga de ao invés de nos ajudar, só atrapalhar. Mas muitas pessoas estão ali, refém da informação que a tal tradutora vai fazer, não pega bem dizer “mas é só isso?”.
Os textos que tenho lido em inglês informam algo, mas não salvaram minha vida, como o poder da tradução gosta de supor. Talvez, vá saber, o poder da tradução sirva para alguma coisa. É que não serviu pra mim, e por isso não sei medir seu valor. Talvez ele esteja bem ajustado no mundo acadêmico em que estamos e não precise de reparos. Talvez.
Para acabar, finalizo com três coisinhas que acabei por aprender:
Aprenda inglês, mas não acredite que isso vai fazer de você um “intelectual”, em qualquer sentido que quiser dar a palavra;
Aprenda inglês, mas não deixe de aprender a escrever e, principalmente,
Aprenda inglês, mas não esqueça de duvidar.
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