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domingo, novembro 06, 2016

Cabelo 'bom' em cabeça 'bem'.



Se alguém me perguntar sobre minha infância e cabelo, com certeza de cara vou lembrar da minha mãe no hospital, quando foi parir meu irmão mais novo. Na ocasião meu pai cortou meu cabelão e o de minha irmã por não querer, não saber e não gostar de pentear.

Mesmo meus cabelos sendo grandes e cheios, minha mãe nunca reclamou de penteá-los e até hoje lembro de vários dos penteados nada convencionais que ela inventava e nos mandava para a escola, na época eu não gostava muito, mas hoje eu acho que até os repetiria, se tivesse filhas.

Lembro-me que na escola, certa vez, um dos penteados pareceu engraçado para minhas colegas. Eu era muito, muito tímida e não havia ainda descoberto que precisava de óculos e, por isso, sentava-me à frente com aquele monte de cabelo que atrapalhava as demais crianças, que riam do penteado que até eu mesma achava estranho a altura. Anos depois, vim saber que minha avó, mãe da minha mãe, falou algo sobre ela casar com meu pai por causa dos filhos que nasceriam com 'cabelo duro'. Felizmente, fiquei sabendo disso muito tempo depois de ter nascido.

Nos primeiros anos de escola, talvez por serem todas as crianças negras, vai saber, eu não associava os chistes à questão racial. Acho que o fato da minha mãe nunca reclamar dos nossos cabelos, meu e da minha irmã, fez com que minha relação com o cabelo não fosse tão ruim na infância. Claro que eu tive questões com cabelo, corpo, rosto, sorriso e dentes, como toda criança e adolescente, mas o que eu digo é que a essa altura ainda não me sentia menor ou inferior por isso.

Minha mãe deixou meu cabelo crescer novamente e dos cinco aos quinze anos mantive meu cabelo natural. Não imaginava escovar ou ter que alisá-lo. Eu não o usava solto, mas isso tem mais a ver com o fato de não saber como fazer com ele ou como cuidar do que com propriamente chamamos 'aceitação' nos dias de hoje. Tinha pouca informação sobre como cuidar do cabelo e, claro, o racismo nos alcançava, mas não me fazendo não ter autoestima e sim porque eu simplesmente não era levada em consideração pelo mercado de cosméticos, que a mim só dava uma opção: alisar.

Senti vontade de relaxar o cabelo apenas quando saí do bairro onde morava e passei a conviver parte do dia numa escola de um bairro de classe média de Salvador. Quase três anos depois dessa convivência, pedi a minha mãe que me deixasse relaxar o cabelo para o dia da formatura. Ainda posso ver os efeitos desse primeiro relaxamento nas fotografias, muito embora o relaxamento não tenha tido grande efeito, já que era a primeira vez e o cabelo estava completamente ‘virgem’. Tive assim, não um cabelo alisado, apenas menos cheio. Nunca gostei de escova e, quando a cabeleireira que relaxou falou em escovar, eu disse não! Sempre achei o efeito da escova horrível. Fico pensando e acho que isso tem a ver com minha mãe. Ela sempre achava horrível tudo que não era ‘natural’. Entenda-se ‘natural’, por ‘ser como é’. Se ele era cheio e enrolado, ela achava que esse jeito era bonito e pronto.

A onda do relaxamento me pegou dos 15 aos 19 anos. Depois, cortei o cabelo bem curtinho. Depois desse corte, tive dreadlocks por dois anos. No fim da faculdade, cortei curto novamente porque achei que com dreadlocks seria difícil arrumar emprego (é aqui que eu vejo como eu já estava sacando qual eram as 'adaptações' que eu deveria fazer para ser aceita em alguns lugares).

Com 23 anos voltei a relaxar o cabelo e fiz isso por aproximadamente três anos. Eu tinha novamente saído dos lugares onde vivia para uma cidade onde o preconceito acontecia de modo sistemático com migrantes negras, vindas da Bahia (“baianada” era mesmo um adjetivo pejorativo ali). Meu cabelo continuava sendo muito cheio e um novo corte que 'diminuía o volume' foi me apresentado por uma cabeleireira, de modo que eu relaxava e cortava o cabelo nesse molde para que ele não ficasse tão cheio como era. Ainda assim, em comparação a qualquer cabelo liso, ele era bem cheio. Uns três anos depois, já empregada, me sentindo mais confiante para fazer o que me desse na telha, parei de relaxar. De lá para cá (e já são dez anos!), eu mantenho meu cabelo natural e curto, principalmente porque ele deixou de crescer como antes. Uso tranças e já coloquei tranças compridas de kanekalon, mas logo sinto saudades e volto a usar o meu cabelo natural. 

Fiz um resumo da minha vida capilar para dizer que mesmo eu, que nunca tive obsessão por alisamento, fui pega por essa ideia de que o cabelo liso ou menos crespo é “mais fácil de cuidar”. Também acreditei por algum tempo que quem tinha o cabelo menos crespo se sentia bem todos os dias quando acordava. Basicamente é isso que estas propagandas sobre cabelo liso vendem: a ideia de que quem tem cabelo liso está sempre bem e com a autoestima lá em cima.

Mas não, isso não pode ser real. Uma amiga que alisa o cabelo há muito tempo me disse que acha o meu cabelo o máximo porque ele “fica do jeito que eu boto”. Isso não é bem verdade, cabelos crespos podem não sair do lugar, mas amassam e a gente também precisa de espelho. Ainda assim, a fala dela me alertou para o fato de que todas as pessoas têm dias ruins com seus cabelos. Ter um dia ruim com seu cabelo não é o problema, o problema mesmo é o preconceito que o cabelo crespo ainda enfrenta nos dias atuais.

Isso porque, mesmo para ter cabelo crespo, ele precisa ser 'o' crespo. Aquele que está na moda e é almejado. É uma luta constante para fazer parte e estar dentro desse seleto grupo de pessoas que conseguem ser bonitas. O meu cabelo não é 'o' crespo e, por isso, ele continua não sendo visto. A coisa toda é bem triste. Eu noto, faz algum tempo, que muitas pessoas me olham como se eu fosse alguém que me cuidasse menos porque tenho cabelo crespo. “Já que eu não aliso, eu não me cuido”. Algumas vezes, ao estar com mulheres que alisam o cabelo ou tem cabelo liso, me sinto não apenas diferente, mas por vezes inferior, como se não tivesse atingido um patamar de mulher. Isso me foi dito por uma menina de cinco anos que quando me conheceu, perguntou-me quando é que eu alisaria o cabelo para virar “mulher-gente”.

Acho que não fico tão mal com essas situações porque tenho alguma leitura sobre raça e classe, senão elas me pegariam de cheio (ou não, vai saber, vai ver eu sou assim mesmo). Depois de um tempo, percebi que o incômodo está na diferença, então de certa forma as pessoas de cabelo liso e que querem ser iguais a um padrão, elas também se incomodam com você ali, sendo diferente e vivendo sua vida ("Como assim, ela feliz e não é padrão? Não, não pode, ela deveria estar triste como eu. Aliás, mais triste do que eu, porque, afinal, ela tem cabelo e nem é 'o' crespo!). Quando descobri isso, me incomodei menos e acho que incomodo mais. Mas claro, tudo isso é muito chato, tem dias que você só quer sair de casa e tomar um sorvete, sem se preocupar com nada. Mas não, isso não parece ser comum para nós, pessoas sempre em alerta.

Certa vez uma colega me disse que gostava do meu cabelo porque isso me dava um “ar selvagem”. Enquanto escrevo essas palavras e lembro dessas coisas, tudo parece muito estranho, mas é assim que já senti que as pessoas me viam, selvagem e exótica, além da já comentada ideia de desleixada. 

As mensagens que ecoam se complementam: primeiro é a de que, para nós, mulheres negras, para deixarmos de ser crianças e sermos vistas como mulheres, precisamos abandonar a “natureza” e ir de encontro a cultura. Assim, para tornar-me pessoa, preciso modificar partes do meu corpo. É preciso perseguir essa ideia de norma – que é branca, não por coincidência.

Todo mundo quer ser alguém mas, para nós, ser alguém é ser um outro. E para atingirmos o lugar de “alguém”, ideia que se confunde com a ideia de branquitude e humanidade, só com mutilação. A ilustração dessa ideia acontece quando vemos mulheres negras que modificaram seu corpo com suas filhas: estas, ainda pequenas, tem cabelos crespos e estão mais próximas à “natureza”. Quando crescem, mudam o corpo e tornam-se mulheres, vinculando-se à ideia de “cultura”. A pergunta que fica talvez seja: Em que espelho do tempo mãe e filha se veem? Será que se encontram?

Infelizmente, continuamos a achar que só quando crescemos é que podemos 'ser alguém'. Crescer seria então, nos tornarmos aquilo que nunca fomos – e que nós, mulheres negras, nunca alcançaremos em sua 'perfeição'. De modo muito cruel, estamos todas chafurdadas em racismo e preconceito, sejam eles naturais ou culturais. Espero que dias melhores tragam cachos e carapinhas ‘bons’ em cabeças ‘bem’.

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