Quando mainha ouviu, no filme Histórias Cruzadas, a mãe da jornalista Skeeter falar que, às vezes, a coragem pulava uma geração, disse um é mesmo, no meio da sessão.
Não acho bem que, no caso de nossa família, a coragem tenha pulado uma geração. Talvez tenha mais a ver com falta de oportunidades. Ontem, conversando com mainha, perguntei à ela o que fazia com que, mesmo não tendo tido acesso à universidade, achasse que para suas filhas, esse lugar era tão importante. Fiquei com isso na cabeça quando voltei de uma visita à casa da senhora que me acolheu aqui em São Paulo há quase oito anos. Agora, há duas meninas negras com mais ou menos a mesma idade que eu tinha quando fui mora com ela. Uma de Minas Gerais, outra da Bahia. Elas trabalham o dia inteiro, não sobra muito tempo para estudar. Na verdade, não sobra muito tempo nem para sonhar. Acordam às cinco da manhã e chegam em casa às nove da noite.
Mainha então me contou coisas que eu já sabia, outras não. Disse que foi criada mais com a família de seu pai, que valorizava a educação das mulheres, mesmo no interior da BA, há quase cinquenta anos atrás. Uma família de negros e indígenas, que tinham alguns médicos e advogados, muitas professoras. Ela sempre falou de sua tia Amália, que falava da importância de estudar. Essa minha tia-avó nunca casou. A gente vai visitar a moça sempre que pode, ela mora num lugar lindo, uma casinha no meio de um mundo de terra, que ainda precisa de gerador para ver-se o noticiário e com um banheiro muito simples. Uma fonte de água limpa e animais vivendo soltos, o que, à primeira vista, pode assustar muito (tomar carreira de boi e picada de galo, na hora, é emocionante, mas, depois, vira graça e lembrança boa).
Uma delícia de lugar. Lembro que a primeira vez que o namorado de mainha foi lá e viu um monte de mangas no chão, caídas, ficou louco. Queria botar tudo dentro de um saco e trazer para casa. Ele, que sempre morou na "cidade", achava tudo aquilo uma belezura e um desperdicio! Até os bois e as vacas, os cavalos e as galinhas que por ali andavam devem ter rido dele.
Mainha foi criada nesse lugar. Depois, veio para a cidade. Mas a vontade de estudar nunca passou. Formou-se em Nível Médio depois de casada, e sempre quis fazer faculdade de Comunicação Social (que nem sei se ainda existe!). Meu pai não tinha terminado o Ensino Fundamental. Todas as vezes que a gente se estabelecia num lugar, lá ia mainha procurar vaga para ele terminar de estudar. Ela mesma terminou o segundo grau em uma cidade diferente da que tinha começado. Lembro de algumas fotos dela com a farda do segundo grau, sorrindo no meio de suas colegas. Mainha estava trabalhando e na época, não tínhamos celular para nos comunicar.
No dia de inscrição para o vestibular, fiquei numa fila de mais de nove horas para conseguir o tal papel que me dava a garantia da inscrição. Cheguei em casa quase meia-noite e isso para mim que, à época, tinha dezesseis anos, era bastante tarde. Estava sozinha, com fome e com medo. Não entendia ainda tanto esforço e nenhuma ajuda de meu pai para ir me buscar no ponto de ônibus.
Lembro de tudo, até da roupa que vestia! Um vestido rosa com florzinhas pretas. Não gostei da experiência, porque me senti só. Fiz o tal vestibular, passei. Comecei a estudar. Minha mãe ajudou-me muito para que eu não trabalhasse em empregos como vendedora de loja ou coisa parecida enquanto estudava. Na verdade, ela nunca cobrou que eu trabalhasse enquanto estudava. Nunca. Isso nunca foi discutido em minha casa. Eu estudava, isso era um trabalho, ponto.
Eu perguntei à ela como ela teve esse tino, mesmo tendo poucas experiências escolares. Disse que pensava à frente, tendo visto a experiência das pessoas da família de seu pai, que estudaram. Isso é ancestralidade.
O esforço feito por mim e por mainha já aparece. Fui visitar as moças e senti-me mal por trabalhar apenas quatro horas por dia. Quando elas chegaram do trabalho, eu já estava cansada de não fazer nada.
Amo meu trabalho, mas não quero morrer de trabalhar. Alíás, para amar meu trabalho, eu preciso continuar assim, trabalhando pouco. Qualquer dia eu falo mais disso.
No outro dia, tive que acordar mais cedo para ir ao trabalho. Era o dia de entregar minha dissertação de mestrado e eu peguei duas lotações para trabalhar. Comecei a chorar, dentro da lotação. Mas ninguém me olhava, eu sempre choro em trens e lotações quando tenho vontade, quase nunca as pessoas te olham dentro dos olhos por aqui, acho que até percebem que você está chorando, mas nunca tem certeza. Chorei pensando que há menos de oito anos passava sérias necessidades, mas, ainda assim, peguei o dinheiro que eu tinha, comprei uma passagem para Salvador, de ônibus, para reunir referências, para tentar uma bolsa para mestrado (curso que só comecei a fazer 06 anos depois que cheguei aqui).
Era isso mesmo que eu queria que mainha explicasse, porque que eu fazia isso, o que é que me movia. Ela me contou tudo isso que eu contei e ainda disse que era tudo que ela sempre quis para ela.
Por isso, eu sou o que sou porque vi com os olhos de mainha.
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