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sábado, dezembro 26, 2015

O diário de Bitita.


Por razões de pesquisa hoje o livro de Carolina Maria de Jesus que me interessa mais é com certeza o Diário de Bitita. Não sei se por isso gosto mais dele do que aquele mais famoso, o tal Quarto de Despejo... 



Reeditado recentemente pela editora Sesi-SP, o livro foi publicado em 1982 primeiro em francês (no Brasil, o livro foi publicado em 1986). Nele, Carolina relata parte de sua vida ainda criança, suas sensações em relação à vida em que vivia ainda em Sacramento (MG) e cidades por onde passou por conta das agruras a que esteve submetida. Apesar de não poder ser precisa com relação até que idade Carolina relata sua infância no livro, ouso dizer que é possível escutar a voz de uma Carolina de pelo menos 15 anos. 


O livro me tomou por inteira porque lembra uma discussão que venho travando sobre consciência racial com pessoas mais próximas. É certo que muitas pessoas acreditam que pessoas tornadas pobres não tem consciência (e menos ainda as crianças). Ainda que Carolina tenha escrito este livro não quando era criança, ela busca retratar o que pensava quando ainda era muito pequena, o que nos dá margem para pensar que mesmo que tenha sido uma invenção, uma construção já feita quando era mais velha, ainda assim faz-nos repensar sobre a ideia de consciência que temos, muito relacionada à uma ideia abstrata e representativa de consciência e não uma consciência forjada na experiência.
Há muitas passagens no livro que me deixaram sem fôlego e me fizeram acreditar que a pesquisa de doutorado que desenvolvo não é uma maluquice sem precedente.
 Aqui reproduzo algumas passagens e apontamentos feitos por Bitita que dão pano pra manga:

Bitita x gênero

- Mamãe, eu quero virar homem! Não gosto de ser mulher! Vamos, mamãe! Faça eu virar homem! [...]
- Porque você quer virar homem?
- Quero ter a força que tem o homem [...] O homem que trabalha ganha mais dinheiro do que uma mulher e fica rico e pode comprar uma casa bonita para morar (p. 16-17)

Bitita x liberdade sexual (machismo)

E eu fiquei pensando: "É melhor ser meretriz, ela canta vai aos bailes, viaja, sorri. Pode beijar os homens. Veste vestidos de seda, pode cortar os cabelos, pintar o rosto, andar nos carros de praça e não precisa obedecer a ninguém!" (p. 83)

Bitita x pobreza

Era difícil morrer um rico, porque assim que eles adoeciam procuravam um médico. Quando o pobre arranjava dinheiro para ir ao médico, já era tarde demais. (p. 79)
Não me agradava o modo de vida dos pobres. Não podia nem classificar aquilo de vida, sofriam mais do que os animais. (p. 98-99)
As crianças ricas quando adoeciam era por causa da tosse. As pobres eram anêmicas, raquíticas, por andarem descalças. (p. 99)

Bitita x racismo

Observava as consequências de todos os atos que praticamos. Quando os negros bebiam, eu pensava: "Porque é que só os pretos bebem?". Mas os brancos bebiam dentro de suas casas. Se um branco cambaleava na rua diziam que era indisposição, mal-estar. Se um branco bebia nos bares era repreendido: - Você está imitando os negros? Arranjou um negro para ser seu professor? (p. 55)

Quando havia um conflito , quem ia preso era o negro. E muitas vezes o negro estava apenas olhando. Os soldados não podiam prender os brancos, então prendiam os pretos. Ter uma pele branca era um escudo, um salvo-conduto.
(p. 55)
Bitita x beleza (e racismo!)

- Sabe, Carolina, você vem trabalhar pra mim, e quando eu for a Uberaba eu compro um vestido novo pra você, vou comprar um remédio pra você ficar branca e arranjar outro remédio para o seu cabelo ficar escorrido. Depois vou arranjar um doutor para afilar o seu nariz. Pensei:
[...] "E quando eu ficar com os cabelos escorridos e o nariz afilado, quero ir a Sacramento para os meus parentes me verem. Será que vou ficar bonita? 
Durante seis meses trabalhei para Dona Maria Cândida. [...] Rejubilei interiormente quando ela me disse que ia a Uberaba. Fiquei aguardando o retorno com ansiedade. Ela permaneceu dois dias fora. [...] mas fiquei decepcionada. Ela não trazia pacotes. Então ela enganou-me! Pensei nos seis meses que trabalhei para ela sem receber um tostão. Minha mãe dizia que o protesto ainda não estava ao dispor dos pretos.  (p. 136-137)

Além dessas questões, Bitita também questiona a autoridade das pessoas adultas em relação às crianças e o motivo dessa relação ser tão naturalizada:

Como é horrível ser criança! Não tem permissão para fazer isto ou aquilo. Que mundo é este, temos que aceitar as imposições, sendo assim, o homem não é livre. (p. 77)


Bitita cunha a expressão semilivre para falar sobre a forma como via a participação das crianças, das mulheres e da população negra na sociedade que ela estava vivendo. Taí, semilivre. Boa e fantástica definição. Como Carolina de Jesus sempre é. 

Carolina e os filhos (sem data)

Agora é procurar pra ler! 

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