Sabe desses livros que a gente encontra garimpando para pesquisas acadêmicas?
O livro Damas Negras: Sucesso, lutas, discriminação, de Sandra Almada, pela Editora Mauad, ano 1995, foi um deles. Fiquei sabendo do livro por outro livro igualmente belo, A Negação do Brasil, de Joel Zito Araújo, Editora SENAC, ano 2004.
Em tempos de Spike Lee no Brasil para falar de nossos/as negros/as, Joel Zito Araújo é um dos convidados para este documentário, assim como Joaquim Barbosa, ministro do Supremo Tribunal Federal. Eu teria uma lista de negros e negras que deveriam ser entrevistados por Spike Lee. Todo mundo tem uma lista dessas (A primeira desembargadora negra do Brasil, Luislinda Valois, com certeza, é uma das mulheres que eu gostaria de ver entrevistada. A gente quase não a vê na televisão brasileira. Eu tenho a sorte de, morando em Salvador, conseguir um material maior falando sobre ela). Como eu acredito que ele esteja falando sobre ascensão, não sei se vai perguntar a alguém de baixa renda o que acha do racismo e do preconceito no Brasil. Seria, no mínimo, um bom registro dessas tensões todas.
Seria ótimo que alguém também perguntasse, ao jornal Folha de São Paulo, sobre seus editorais sem sentido e sua campanha aberta contra cotas nas universidades públicas brasileiras.
Ops, eu estou aqui para falar do livro de Sandra Almada. Preciso transcrever parte do livro aqui. Entrevista com Chica Xavier, atriz negra baiana candomblecista, que completou em fevereiro de 2012, 80 anos. Todas as entrevistas contém passagens muito boas de serem transcritas, mas eu reproduzo aqui uma parte em que Chica fala sobre questões da cidade do Salvador no começo do século vinte. Acho ótimo poder conhecer registros como esse, que falam um pouco como a ocupação de uma cidade vai se transformando pouco a pouco, quanto mais a exploração e a colonização vai se instalando. Sou uma aficcionada pela questão geográfica no Brasil, sobretudo nas grandes cidades, embora não fale muito sobre isso neste blog. Por isso é que gosto tanto do livro de Maria Nilza dos Santos, chamado Nem para todos é a cidade: segregação urbana e racial em São Paulo. Já falei dele aqui algumas vezes.
Leio bastante coisa sobre a ocupação da cidade de São Paulo e seu "novo" pedaço na Zona Sul, dos migrantes nordestinos. Chamo de segunda leva migratória nordestina, ocorrida na década de 80, visto que a primeira, acredito, tenha sido por volta das décadas de 40-50 (deveria ser mais disciplinada e andar com um gravadorzinho para ter registrado as histórias de um casal negro morador na região do Vale do Ribeira, contando-me sobre a São Paulo da década de 50. Ela, jovem negra paulistana, apaixonou-se por um homem negro cearense, e seus pais tinham muito medo do relacionamento, visto que a ideia que se tinha era que os nordestinos, todos eles, andavam armados com uma grande faca, também conhecida como "peixeira". Ele, por sua vez, contou-me que veio para São Paulo porque, em sua cidade natal, campanhas organizadas e subsidiadas pela prefeitura - que incluíam chamadas com carros de som pela cidade, falando sobre as maravilhas da capital paulista - fê-lo crer, assim como grande parte de sua geração, que São Paulo era a terra das oportunidades. Não vir à São Paulo era o mesmo que não querer "melhorar de vida", o mesmo que perder uma grande chance).
É possível notar que São Paulo possui uma porção sul significativamente maior que as outras zonas, justamente por conta do alargamento dessa zona da cidade, em detrimento do grande número de migrantes que para cá vieram, instalando-se nas áreas consideradas de mananciais da cidade. Grajaú, Parelheiros e Marsilac são os distritos paulistas que colaboraram para a mudança no mapa da capital paulista e no alongamento da silhueta "Zona Sul".
Gosto especialmente desse trecho da entrevista, porque Chica não estava falando diretamente sobre a geografia de Salvador, quando começa a contar-nos parte de sua história. Ela está falando sobre religião e, quando vemos, estamos aprendendo sobre como a cidade foi paulatinamente ocupada por seus colonizadores e, assim, temos a certeza que os bairros onde hoje instalam-se a elite branca da cidade eram, em sua maioria, bairros negros (assim como Liberdade e Bixiga, em São Paulo. Não é sintomático que o Bixiga tenha uma rua chamada 13 de maio?).
Sandra Almada: A senhora nunca pensou em publicar um livro contando sua vivência dentro da cultura afro-brasileira?
Chica Xavier: Eu tenho muitos livros da religião de candomblé e outros de cultura negra. Tenho um dicionário em iorubá e um dia ainda, se diminuir a minha preguiça, vou escrever sobre os orixás, os "encantados", os caboclos, do meu ponto de vista, aquilo que eu sinto... Existe um "encantado", dentro do candomblé, que é mais da linha de caboclo, que é uma coincidência muito grande. Eu estava guardando esta história para o meu livro, mas vou lhe contar. Nasci num lugar, em Salvador, que não existe mais. Era uma roça de candomblé. Embora minha mãe não soubesse nada de candomblé, não tivesse nenhum passado ligado a candomblé - porque ela foi educada por padrinhos brancos, ricos, que a criaram dentro de todas as leis da Igreja católica -, quando ela resolveu sair, se libertar desses padrinhos e ir trabalhar fora, ela conheceu o Anísio Teixeira, trabalhou com ele, e arrumou um namorado que foi o meu pai. Quando ficou grávida e viu que se tornaria mãe solteira, fugiu de todo aquele ambiente e foi se esconder no mato para ter a filha, desenvolver a gestação e me esperar. Ela se escondeu num lugar chamado "Roça da Sabina", era nas Quintas da Barra, que hoje em dia é um bairro refinado, mas antes era uma roça de candomblé de mãe-de-santo que se chamava Sabina. Esse nome está até registrado nos livros de Edison Carneiro. Ela é falada, conhecida. Eu vim descobrir isso na época que fiz Magé Bassã (personagem da novela Tenda dos Milagres, exibida na Rede Globo em 1985), porque peguei o livro dele para saber um pouco mais dos pais-de-santo e mães-de-santo da Bahia que eu não conhecia. Então, descobri, por coincidência, que eu tinha nascido nessa roça da Sabina [...]
Em tempo: Escrevi que moro em Salvador. Ia consertar, mas adorei o ato falho.
Em tempo mais uma vez: Chica Xavier é casada desde 1956 com Clementino Kelé, ator negro. Orgulho demais de ser mulher preta baiana, como Chica Xavier!