Você que me lê, me ajuda a nascer.

domingo, abril 29, 2012

Chica Xavier.

Sabe desses livros que a gente encontra garimpando para pesquisas acadêmicas? 
O livro Damas Negras: Sucesso, lutas, discriminação, de Sandra Almada, pela Editora Mauad, ano 1995, foi um deles. Fiquei sabendo do livro por outro livro igualmente belo, A Negação do Brasil, de Joel Zito Araújo, Editora SENAC, ano 2004. 

Em tempos de Spike Lee no Brasil para falar de nossos/as negros/as, Joel Zito Araújo é um dos convidados para este documentário, assim como Joaquim Barbosa, ministro do Supremo Tribunal Federal. Eu teria uma lista de negros e negras que deveriam ser entrevistados por Spike Lee. Todo mundo tem uma lista dessas (A primeira desembargadora negra do Brasil, Luislinda Valois, com certeza, é uma das mulheres que eu gostaria de ver entrevistada. A gente quase não a vê na televisão brasileira. Eu tenho a sorte de, morando em Salvador, conseguir um material maior falando sobre ela). Como eu acredito que ele esteja falando sobre ascensão, não sei se vai perguntar a alguém de baixa renda o que acha do racismo e do preconceito no Brasil. Seria, no mínimo, um bom registro dessas tensões todas. 

Seria ótimo que alguém também perguntasse, ao jornal Folha de São Paulo, sobre seus editorais sem sentido e sua campanha aberta contra cotas nas universidades públicas brasileiras.

Ops, eu estou aqui para falar do livro de Sandra Almada. Preciso transcrever parte do livro aqui. Entrevista com Chica Xavier, atriz negra baiana candomblecista, que completou em fevereiro de 2012, 80 anos. Todas as entrevistas contém passagens muito boas de serem transcritas, mas eu reproduzo aqui uma parte em que Chica fala sobre questões da cidade do Salvador no começo do século vinte. Acho ótimo poder conhecer registros como esse, que falam um pouco como a ocupação de uma cidade vai se transformando pouco a pouco, quanto mais a exploração e a colonização vai se instalando. Sou uma aficcionada pela questão geográfica no Brasil, sobretudo nas grandes cidades, embora não fale muito sobre isso neste blog. Por isso é que gosto tanto do livro de Maria Nilza dos Santos, chamado Nem para todos é a cidade: segregação urbana e racial em São Paulo. Já falei dele aqui algumas vezes. 

Leio bastante coisa sobre a ocupação da cidade de São Paulo e seu "novo" pedaço na Zona Sul, dos migrantes nordestinos. Chamo de segunda leva migratória nordestina, ocorrida na década de 80, visto que a primeira, acredito, tenha sido por volta das décadas de 40-50 (deveria ser mais disciplinada e andar com um gravadorzinho para ter registrado as histórias de um casal negro morador na região do Vale do Ribeira, contando-me sobre a São Paulo da década de 50. Ela, jovem negra paulistana, apaixonou-se por um homem negro cearense, e seus pais tinham muito medo do relacionamento, visto que a ideia que se tinha era que os nordestinos, todos eles, andavam armados com uma grande faca, também conhecida como "peixeira". Ele, por sua vez, contou-me que veio para São Paulo porque, em sua cidade natal, campanhas organizadas e subsidiadas pela prefeitura - que incluíam chamadas com carros de som pela cidade, falando sobre as maravilhas da capital paulista - fê-lo crer, assim como grande parte de sua geração, que São Paulo era a terra das oportunidades. Não vir à São Paulo era o mesmo que não querer "melhorar de vida", o mesmo que perder uma grande chance). 

É possível notar que São Paulo possui uma porção sul significativamente maior que as outras zonas, justamente por conta do alargamento dessa zona da cidade, em detrimento do grande número de migrantes que para cá vieram, instalando-se nas áreas consideradas de mananciais da cidade. Grajaú, Parelheiros e Marsilac são os distritos paulistas que colaboraram para a mudança no mapa da capital paulista e no alongamento da silhueta "Zona Sul".





Gosto especialmente desse trecho da entrevista, porque Chica não estava falando diretamente sobre a geografia de Salvador, quando começa a contar-nos parte de sua história. Ela está falando sobre religião e, quando vemos, estamos aprendendo sobre como a cidade foi paulatinamente ocupada por seus colonizadores e, assim, temos a certeza que os bairros onde hoje instalam-se a elite branca da cidade eram, em sua maioria, bairros negros (assim como Liberdade e Bixiga, em São Paulo. Não é sintomático que o Bixiga tenha uma rua chamada 13 de maio?).

Sandra Almada: A senhora nunca pensou em publicar um livro contando sua vivência dentro da cultura afro-brasileira?


Chica Xavier: Eu tenho muitos livros da religião de candomblé e outros de cultura negra. Tenho um dicionário em iorubá e um dia ainda, se diminuir a minha preguiça, vou escrever sobre os orixás, os "encantados", os caboclos, do meu ponto de vista, aquilo que eu sinto... Existe um "encantado", dentro do candomblé, que é mais da linha de caboclo, que é uma coincidência muito grande. Eu estava guardando esta história para o meu livro, mas vou lhe contar. Nasci num lugar, em Salvador, que não existe mais. Era uma roça de candomblé. Embora minha mãe não soubesse nada de candomblé, não tivesse nenhum passado ligado a candomblé - porque ela foi educada por padrinhos brancos, ricos, que a criaram dentro de todas as leis da Igreja católica -, quando ela resolveu sair, se libertar desses padrinhos e ir trabalhar fora, ela conheceu o Anísio Teixeira, trabalhou com ele, e arrumou um namorado que foi o meu pai. Quando ficou grávida e viu que se tornaria mãe solteira, fugiu de todo aquele ambiente e foi se esconder no mato para ter a filha, desenvolver a gestação e me esperar. Ela se escondeu num lugar chamado "Roça da Sabina", era nas Quintas da Barra, que hoje em dia é um bairro refinado, mas antes era uma roça de candomblé de mãe-de-santo que se chamava Sabina. Esse nome está até registrado nos livros de Edison Carneiro. Ela é falada, conhecida. Eu vim descobrir isso na época que fiz Magé Bassã (personagem da novela Tenda dos Milagres, exibida na Rede Globo em 1985), porque peguei o livro dele para saber um pouco  mais dos pais-de-santo e mães-de-santo da Bahia que eu não conhecia. Então, descobri, por coincidência, que eu tinha nascido nessa roça da Sabina [...]

Em tempo: Escrevi que moro em Salvador. Ia consertar, mas adorei o ato falho. 
Em tempo mais uma vez: Chica Xavier é casada desde 1956 com Clementino Kelé, ator negro. Orgulho demais de ser mulher preta baiana, como Chica Xavier! 


Girimunho.


Raul: O início, o fim e o meio.


terça-feira, abril 24, 2012

Pessoas.


Algumas senhorinhas novas chegaram à natação. Uma delas, toda serelepe, tem quase oitenta anos. É uma mulher branca, divertida e me lembra a minha segunda mãe, pelo número de impropriedades que fala no meio da aula de hidroginástica. Ela contou-me que, na primeira vez em que o professor pediu-lhe para abrir as pernas, ela lembrou-se do marido e de sua viuvez e confessou-lhe que fazia tempo que não fazia isso. Mas agora, disse-me, os exercícios estão ajudando-lhe a ter mais equilíbrio.

Depois segredou-me que algumas moças da aula não gostam de sua brincadeiras. Foram fazer reclamações à esposa do professor. Ela mesma, a esposa, não ligava muito. Preocupou-se mais porque as mocinhas estavam falando. Ela me diz, num misto de tristeza e irritação:

O que é que essas moças querem, minha filha? Eu já vi de tudo nessa vida... e eu quero ser feliz. Conheci muita gente que me ensinou a graça da vida. Trabalhei muitos anos penteando peruca de Dercy Gonçalves. Você acha mesmo que eu vou me importar com o que estão pensando de mim aqui? Fui muito feliz com meu marido, quero homem de outras não. Gozei muito, agora só quero me divertir e lembrar dos bons tempos. 

Dessas pessoas que eu encontro pela vida.

sexta-feira, abril 20, 2012

segunda-feira, abril 16, 2012

Belezas.



Na aula em que frequento este semestre na faculdade, há várias mulheres. Meu olhar fixa-se numa moça muito bonita, que está sempre muito cheirosa e bem-arrumada.
Ela tem a pele bem escura, cabelos curtos e pretos, assim como seus olhos. Talvez para muitas pessoas ela passe despercebido, visto que a beleza de uma mulher negra não é aquela que mais apreciamos em nossa sociedade.
Fico pensando no que me faz ver a mulher negra, aquela de pele mais escura, como a mais bonita dentre todas as mulheres que frequentam a aula. Quero ser como ela. Linda, sorridente, educada, bonita. Quero ter sua pele, seu cabelo e olhos. E fico pensando que o mesmo sentem as meninas negras quando olham para uma menina branca, certa de que nunca conseguirão ter seus olhos, seu cabelo, sua pele.
Sim, minha pele não é a mais escura de todas. Mas olho para pessoas de pele escura - homens e mulheres - e acho a coisa mais linda do mundo. Sem exceção.
Não tenho precisão de como começou essa paixão reverse. Mas tenho em casa bons exemplos: tenho fotografias de homens e mulheres negras espalhadas pelos quatro cantos da casa, fotos onde eles e elas não estão esfomeadas, doentes, sujas e feias. Há alguns anos, meus sonhos eróticos também são povoados por homens negros.
Fui construindo esse gosto e essa beleza é para mim tão visível que perguntei à moça: Cansa de ser bonita, não? Ela, muito lindamente, sorriu.
Não era mesmo pra responder.

sábado, abril 14, 2012

Sobre dançar (ou sobre mim mesma).

O professor me pega. Ele fala pro moço que dança comigo que eu não devo conduzir nada, que estou ali para ser conduzida. Olho para ele com ímpetos de voar no pescoço e esganá-lo, afinal, ele me conhece há apenas um mês e acha mesmo que pode dizer o que eu posso fazer ou o que podem fazer comigo.

Respiro fundo, mas percebo que, quando danço com ele, ele precisa de muito esforço para me levar. Eu não deixo, eu não me deixo ser levada. Ele me diz para sentir a música, sentir meu corpo. E eu, que pensava ser muito "resolvida" com tudo isso, descubro que preciso aprender um pouco mais.

Mais sobre mim. Entrar em uma aula de dança, definitivamente, não é apenas para aprender a dançar. Nada é só o que parece. Quando eu pensei em fazer dança, nem era nessa aula. Mas, por conta de meu calendário estes meses, encarei dança de salão, para não ter que esperar quando teria tempo para dança contemporânea, que é a a aula que eu quero fazer. Nunca pensei que ia descobrir tanto sobre mim mesma,  precisamente, nessa aula.

O moço que me acompanha na aula é um docinho (vocês sabem o que significa para uma mulher negra quando ela diz que o homem é um docinho? Ok, pesquisem sobre isso). O professor pede para ele me conduzir, mas ele fica sem jeito, acho que o meu jeitão de "nem pense nisso", deixa ele assim, receoso. Por algumas vezes, quando o professor dá o comando para ele, eu executo. Tudo isso porque ser conduzida é uma coisa estranha pra mim.

Não tem como. Eu vou me mostrando na aula inteira, em como não gosto ou gosto disso e daquilo.
Mas é só uma aula, e eram pra ser só dois meses nessa aula.

Não era para tanto. Era só aprender a dançar, o professor fala para eu não tirar os olhos dele e eu, que acho lindo encarar as pessoas de frente, fico sem jeito de olhar nos olhos dele o tempo inteiro, me atrapalho com os pés. Ele fica numa boa, faz isso todos os dias com muitas pessoas. Olhar nos olhos é parte do trabalho dele. Por isso, numa aula de dança você não aprende só a dançar.

Eu sempre acho massa começar a aprender uma coisa nova. Penso sempre nas crianças e em como elas encaram novas experiências todos os dias e, estar numa posição de aprendiz me dá mais sensibilidade, para entender como elas se sentem, como se sente qualquer pessoa que está aprendendo. Confesso que, com o passar do tempo, utilizando essa técnica para me tornar mais sensível, acabei achando que já sabia tudo sobre como ser aprendiz. Mas, mais uma vez, me peguei descobrindo como ainda sei muito pouco sobre mim mesma em muitos aspectos.

Saio da aula cheia de ideias. Em como é bom poder conhecer meu corpo e como o que eu penso "dita" o como do meu corpo. Ainda não sei muito sobre isso, estou experimentando. E entendendo como a gente, mesmo sabendo que não sabe tudo, endurece tanto e chega num ponto que acha que o que sabemos é suficiente. Bobagem. Nunca vai ser suficiente. Há sempre alguma coisa para aprender que vale muito a pena. E que muda muito o modo como nos vemos e vemos as outras pessoas.


domingo, abril 08, 2012

sexta-feira, abril 06, 2012

Eu e mainha, mainha e eu.







Histórias (de amor).

Eu faço natação na mesma academia fazem cinco anos. Parece pouca coisa, mas muito aconteceu desde que entrei. É uma academia pequena, que fica num bairro próximo ao meu, e os donos e donas são as mesmas que gerenciam o negócio. Coisa de família. O professor que me dá aula é casado com a filha do dono. Na verdade, ela é mais dona que o pai, junto com as duas irmãs.

Quando eu entrei lá, eles ainda namoravam. Depois, ficaram noivos. Casaram faz mais ou menos dois anos e meio. Acompanhei toda essa trajetória, e acompanhei também a gravidez da moça, complicada. Agora, um filhotinho nasceu, todo sorrisos e alegria. Tem quase dois anos e não para. Me diverte o tempo inteiro enquanto espero a hora de nadar.

Fico meio boba e emocionada com meu professor contando as histórias e peripécias de seu filho. A última foi quando ele comeu um caramujo. Moram numa casa com quintal grande e, sempre que possível, lá está ele sujando-se de barro e comendo coisas que mexem e saem da terra. O pai ri, me contando que ele nunca para, me contando as técnicas que eles estão desenvolvendo para acalmá-lo quando ele está elétrico demais, tudo em vão. Ouço embevecida, ouço feliz. Ele conversa muito. Comigo e com todas. Brinca, faz gracinha, sabe o jeito certo de falar as coisas e não parecer demais ou de menos.

Sempre achei fantástico o modo como a mulher dele lidou com as pessoas no trabalho, com ele. Nesses cinco anos, nunca vi uma briga sequer dos dois na frente de todo mundo, nem fumaça de briga, nada. Ela, ela mesma, nem sabe nadar. Não quer conta. Administra muito bem as coisas da academia, mas nunca entrou uma só vez na água nesses cinco anos que estou lá, e olha que eu vou em todos os horários possíveis.

Nunca consegui mudar de academia. Pode não ser a "melhor" do bairro em infra-estrutura, mas é a única, me contam meus colegas, em que eles se sentem bem. Eu nem arrisco em comparar. Talvez por ser gerenciada pela família toda, é pequena, mas aconchegante. Me sinto bem lá e, vez por outra, faço-os rirem quando digo que vou lá para bater papo e não para fazer exercício, porque pagar natação sai mais barato que pagar sessão terapêutica. Somos uma família, mesmo que seja só por algumas horas durante a semana. Minhas colegas de natação (colegas também) entraram no espírito da coisa e passamos a aula dando risadas. Claro que tem os mais sérios, mas esses não importunamos. O professor também sabe conduzir de modo que pessoas "sérias" não se sintam afetadas (prova é que elas continuam indo no mesmo horário), e que a gente continue dando muitas risadas.

Destes colegas de natação, há um que tinha 13 anos quando eu entrei. O rapaz, agora com 18 anos, me assusta. Cresceu demais, e cruza a piscina em menos de um minuto (ou será meio?) facilmente. Constantemente olho para ele e dou risada, lembrando quando ele era só um molequinho, quase um girino. Ele diz lembrar-se de mim também. Disse que sabe as cores de todos os maiôs que usei. Me divirto. Engraçadinho.

Conheço também a mãe do professor. Uma senhora apaixonante. Conversamos por horas quando fazemos hidroginástica juntas. Ela é migrante de uma cidade do interior do Ceará. Faz tempo que não a vejo.

Fico feliz de poder conhecê-los. O casal. E não estou falando de traição, brigas e tristezas. Desentendimentos. Acho que tem tudo isso ali. Mas, acima de tudo, parecem duas pessoas que sabem que querem muito ficar juntas, aconteça o que acontecer. Acho que é isso que faz deles personagens de uma história de amor.