Casa de insetos, desejos de criança
Como as crianças se relacionam? O que elas pensam? Essas parecem ser as perguntas que guiaram a realização do curta Casa de Insetos de Fernanda Heinz, extraído das 500 horas de gravação feitas por 04 anos numa centro de recreação infantil de classe média alta na zona oeste de São Paulo, para a produção do longa-metragem Sementes do nosso quintal. Apesar do espaço não ser reconhecido pela secretaria municipal de educação de SP como escola por não adequar-se às normas técnicas de estrutura e funcionamento aplicada a todas as escolas da cidade, ele existe há mais de 40 anos. A contradição é ainda maior quando lembramos que a palavra escola, do grego skhole (σχολή), pode significar também lazer, termo bastante associado ao brincar das crianças. E não é justamente isso que se faz ali, nos mostram as cenas?
Além do Casa de Insetos, Fernanda Heinz é diretora de mais dois curtas, chamados Música e Festa do Divino. Todos eles surgiram a partir do mesmo material. Em todos eles, a ideia é o registro cotidiano das crianças que frequentam o lugar. Especificamente no curta Casa de Insetos, a diretora debruçou-se sobre uma casa feita pelas crianças de 04 a 07 anos numa área externa da escola durante um semestre letivo. Com uma trilha sonora que inclui Villa-Lobos, Bach e Chico Buarque, captada em recitais realizados por musicistas parentes das crianças frequentes à escola, a câmera posiciona-se mais baixa, ora nos mostrando um ponto de vista que sugere ser o mesmo das crianças, ora nos fazendo encará-las frente a frente. Recurso bastante utilizado quando o assunto em pauta são as crianças, como no caso do filme francês Bebês, de Thomas Balmes ou no curta O fim do recreio, de Vinícius Mazzon e Nélio Spréa. Por conta dessa escolha, a diretora conta que houve a aquisição de um banco de tirar leite, para adaptação das pessoas que seguravam a câmera. Com o aumento de produções cinematográficas que privilegiam o ponto de vista das crianças há que se pensar se não seria já a hora de serem produzidos instrumentos de trabalho pensados para esse fim.
Um outro fato que chama a atenção é que, em que pese a diversidade presente nos recursos materiais disponíveis para as crianças terem contato na escola, não vemos nenhuma diversidade nos recursos humanos presentes no filme: todas são brancas e a maioria loiras, aparecendo apenas duas ou três crianças com alguma ascendência japonesa. Poderíamos nos perguntar se essas crianças, na escola, estão realmente vivendo um mundo real, apartadas do convívio com um mundo de pessoas diferentes delas. Lembrei-me imediatamente do filme Apenas o começo, dos diretores franceses Jean Pierre Pozzi e Pierre Barougier, lançado em 2010. Partindo das aulas de filosofia ministrada por uma professora de uma escola de educação infantil pública em Le Mee-sur-Seine (interior da França), o filme mostra crianças de todos os lugares do mundo expressando suas opiniões sobre temas espinhosos como morte e racismo. Logicamente, este não é o objetivo do curta em questão. O que me incomodou foi sentir-me mais próxima do filme francês, em termos de representatividade.
A casa, que talvez não seja só de insetos para as crianças, vai sendo produzida com pedras, por folhas, terra e brinquedos, materiais extraídos do entorno das crianças. O curta mostra estas alterações sendo feitas mês a mês, além das intensas negociações que as crianças faziam entre elas para mantê-la de pé ou modificá-la. Há muita conversa entre as crianças durante as cenas, mas ela não parece ser a tônica do filme, já que com as sobreposição de vozes e sons elas fiquem em segundo plano. Esse também foi um recurso utilizado no filme Território do Brincar, de Renata Meirelles, que por sinal aparece nos créditos como consultora do roteiro. Neste, as imagens são o que mais importam, e as crianças brincando ao redor do país inteiro diz muito mais do que qualquer tese sobre a importância do brincar. É possível, ainda assim, compreender que as crianças estão na maior parte do tempo elaborando respostas para elas mesmas sobre as coisas que acontecem à sua volta. E é também o que fazem quando, no mês de novembro, as crianças chegam à escola e veem que a casa não está mais lá. Elas conversam entre si e pensam nas principais possibilidades, mas nenhuma delas imagina o que realmente aconteceu. Talvez porque, por algum tempo, as crianças tenham acreditado que seria possível ter suas opiniões respeitadas ali, num espaço que se pretende menos impositivo. Ao fim e ao cabo, Num mundo ditado pelas/os adultas/os, para as crianças, a liberdade é um desejo de criança.
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