Casamento entre zulus (Fonte: Internet)
Nestes últimos dias, passei um tempo ouvindo histórias. Muitas histórias sobre mulheres e algumas sobre homens e nossas diferenças. Não cheguei a muitas conclusões, mas quero registrar aqui o que acho que aprendi.
Uma das coisas que ouvi foi a expressão poligamia (relacionada à poliginia, prática onde um homem relaciona-se com mais de uma mulher). Em tese, quando ouvimos esta palavra, acreditamos que é a ideia de relacionamento contrário à monogamia. A monogamia seria a relação entre um homem e uma mulher (escrevo a partir de minha referência heterossexual. Aqui também, não estou falando de
poliandria, nome que recebe a prática da poligamia realizada por mulheres). Poligamia seria, assim, várias relações ao mesmo tempo. Quando um homem diz-se poligâmico, imaginamos que ele tem relações com várias mulheres. Na maioria das vezes, pensamos que estas relações não implicam em compromisso ou responsabilidade, seja material ou emocional.
Conversando com um amigo nigeriano, ele me contou o que significava a expressão poligamia em sua vida. Descobri que, se alguns homens acreditam que dizer-se poligâmico implica em não-compromisso ou responsabilidade, para ele, é o contrário. Nascido e criado em Osun, cidade próxima a capital da Nigéria (Lagos), para ele, poligamia é o que o irmão de seu pai pratica em sua família. A mãe dele é viúva de seu pai, que tinha um irmão e tornou-a sua segunda esposa. Antes disso, sua mãe havia sido casada com um homem que não tinha irmãos e, por isso, casou-se de novo com seu pai. Quando perguntei se ele desejava ser poligâmico, disse-me de cara que não, porque não conseguiria assumir tantas responsabilidades.
Ouvindo o relato do diplomata Alberto da Costa e Silva, tenho também outras impressões sobre poligamia. Ele conta que a mulher de seu motorista em Lagos, desabafando-se com sua esposa, pergunta a ela se seu marido (o diplomata) tinha apenas uma mulher. Quando ela responde sim, a mulher do motorista demonstra surpresa e pergunta como ela o agüenta, sozinha, todo o tempo. Além disso, o diplomata contou, nesta palestra em que estive presente, que ter várias mulheres fazia com que seu motorista tivesse uma família estendida para além daquilo que conhecemos, visto que todas as suas quatro sogras eram também suas mães. Assim, num mesmo ano, ele teve que não apenas festejar dois aniversários de suas mães, como também chorar o luto de duas delas.
Essa é a poligamia que conheci, conversando com meus amigos e ouvindo este relato. Julgo dizer que, neste ponto de vista, homens que não querem compromisso material ou sentimental, emocional, seja lá o que for, não são poligâmicos. Podem ser, entre outras coisas, homens bastante inseguros. Não quero aqui dar uma resposta única a este movimento chamado relacionamento, afinal, as pessoas se relacionam, vivem, amam e desamam. Muitas até mesmo mentem. O que me preocupa é estarmos usando uma expressão para designar outras coisas, outros sentidos.
Homens inseguros ou com baixa auto-estima precisam ser amados. Talvez procurem captar esta sensação enquanto transam, ou usem sua inteligência para cativar um grande número de mulheres, visto que, quanto mais mulheres o procuram e o querem, mais ele sente-se melhor e fortalecido. Esta é uma boa saída para esconder sua própria incapacidade de lidar com as conseqüências da vida, com os compromissos e responsabilidades do crescer, do envelhecer. Conversei com um homem que confessou-me que, em dois meses, havia transado com vinte e duas mulheres. Quando perguntei o que ele estava querendo com isso, acabou confessando que quem ele realmente queria não tinha dado a mínima bola pra ele. Histórias.
Roger Bastide, em seu livro Candomblés da Bahia, faz uma nota de rodapé e comenta que o modo como se relacionavam negros baianos em Salvador em fins do século dezenove era uma recriação de contextos poligâmicos vividos no continente africano. Ele chega a afirmar que, a prática de homens negros, de terem uma mulher num e noutro bairro de Salvador, devia-se a organização das sociedades a quais estavam ligados em seus países de origem, sendo apenas este modo uma ressignificação desta prática no Brasil. Eu não concordo com Bastide. Não acho possível explicar de maneira tão sucinta o fato de homens negros em Salvador terem mais de uma mulher. Acredito que este tema precisa ser estudado muito mais profundamente. A lógica utilizada por Bastide para analisar estas relações, é uma lógica eivada de conceitos vindos de uma sociedade européia e ocidental.
Acho assim que, homens negros brasileiros equivocam-se ao usar o termo poligamia para designar o fato de namorarem com várias mulheres ao mesmo tempo. Nessa lógica, estariam associando-se ao pensamento bastidiano sobre nossas práticas sociais. Dizendo isso, não condeno homens e mulheres que se relacionam com várias pessoas. Condeno sim, mentiras. Não acho que precisemos disso para manter estas relações.
Na verdade, acho bem difícil entender a poligamia praticada especificamente por estes grupos que citei, porque nossa lógica ocidental nos impede de enxergar outras formas de relação que não sejam monogâmicas. A monogamia, assim como a poligamia, tem a ver com compromisso e responsabilidade (além de ter a ver também com contextos históricos, econômicos, entre tantos outros). Entendo que, não querer estar apenas com uma pessoa, e estar com várias sem compromisso, não pode ser uma prática encarada como poligâmica. E não estou falando de sexo.
Não acho que o fato de homens terem várias mulheres sejam uma ressignificação da poligamia e nem acho que a monogamia seja a única solução possível. Dizendo isso, passo para um outro ponto que também envolve o tema.
Os relacionamentos abertos, aqueles que muitas pessoas execram, para mim, são apenas relacionamentos onde a regra única do relacionamento fechado (monogamia) é posta em debate. Não significa, porém, que ela não será acatada em determinados momentos e contextos. O relacionamento aberto, para mim, difere do relacionamento fechado não porque me dá a possibilidade de ter várias pessoas, mas porque me dá a possibilidade de conversar sobre o assunto. O que chamo aqui de relacionamento aberto tem mais a ver com idéias do que com, como todo mundo pensa, sexo desenfreado.
Certa vez, conversando com um amigo, eu disse que onde o relacionamento fechado impõe uma regra única, o relacionamento aberto impõe o diálogo. E não é ele não contenha regras. Em minha opinião, tem tantas quantas forem necessárias para que a relação se estabeleça. Não discordo de quem opte pelo relacionamento fechado e não vejo certezas nem erros em nenhum dos dois. Acho que depende muito do que estamos desejando viver com aquela pessoa, naquele momento. Incomoda-me um pouco a ideia bizarra que as pessoas tem de relacionamento aberto sem conhecer.
Já tive relacionamentos fechados e abertos. Em todos eles, o que realmente contou para mim foi o quanto eu estava envolvida neles.Todos eles foram bons e ruins. Mas uma coisa da qual não pude prescindir foi da honestidade. Não acredito que um homem e uma mulher passem a vida toda desejando apenas uma pessoa. Sei que muitas pessoas fazem escolhas e ficam apenas com uma pessoa boa parte da vida, mas não acho que este é o único modo de escolher viver uma relação. O único modo de viver uma relação que não consigo concordar é aquele baseada em mentiras.
Conheci homens que me amaram e que me fizeram acreditar o quanto todas as generalizações sobre os homens são absurdas. Conheço alguns que ainda me amam, até hoje. Eu posso sentir isso. Para além dos homens que me amam ou amaram, conheço outros tantos maravilhosos. Passaram pela minha vida e ainda me encantam a sua honestidade e cuidado comigo. E, mais uma vez, não estou falando de sexo. Sei que sou abençoada. Mas, mais do que isso, eu acho que encontro estas pessoas porque acredito nelas.
Aí então deparei-me com outra pergunta, bastante demandada: Mas, afinal, o que querem as mulheres negras? Pensando-me como mulher negra inserida num contexto histórico e cultural, posso responder por mim. Mas sei que minha resposta pode espelhar algumas outras e também indicar caminhos de mais tantas.
Se respondo “ser feliz” ou “ser amada”, vão me dizer lugar comum. Mas então eu digo de maneira mais detalhada: eu quero viver relações com homens onde eu possa ser eu mesma, Míghian Danae, com minhas caras e bocas. Com meus muxoxos e sorrisos. Com minhas durezas e fraquezas. Com quem eu não precise apertar a tecla SAP o tempo todo, para fazer-me entender nas coisas do cotidiano. Com quem eu possa contar quando não possa contar com mais ninguém, nem comigo mesma. Com quem eu não precise mostrar tudo de mim mas, se preciso for, não tenha medos de me expor ou de ser ridicularizada. Com quem eu possa ter longas conversas sobre raça, classe, futuro, política, religião, sexo ou futebol (não necessariamente nessa mesma ordem). Para quem eu tenha que invariavelmente dar o pior de mim, certa de que ele compreenderá que não sou apenas aquilo ali. Com quem eu não precise ser guerreira e nem travar batalhas. Com quem ainda acredite que é possível fazer coisas junto e que entenda que uma alegria ou vitória será sempre nossa, nunca só minha ou só dele. Com quem me devolva um carinho e que saiba devolver um elogio, feito apenas para agradar. Eu já passei bastante tempo sozinha para saber que sim, agora eu posso e quero fazer coisas junto, porque já sei de mim o suficiente para dizer-me para alguém.
Eu não sei. Sou só uma mulher negra anônima, no dizer de Lélia Gonzalez. Mas, nesse mesmo dizer, Lélia me diz que eu sou aquela quem pauta as transformações, justamente por ser essa tal “anônima”. Não sou, nunca fui alguém que teme a solidão de um homem. O amor são umas pessoas. Eu exerço-o o tempo todo, com muita gente e em vários lugares. E mais uma vez, não estou falando de sexo aqui. E também não estou dizendo que ele não seja amor.
Mulheres negras sempre amaram e amam para além dos domínios da carne, muito embora a carne também precise ser amada. Satisfaço meus desejos amando pessoas e amando a mim mesma, sinto prazeres outros que não os sexuais quando posso ver esse amor crescendo e se espalhando entre as pessoas que estão ao meu redor. Às vezes, soa bobo demais falar de amor. É nessas horas que lembro de bel hooks e Cornel West, Geni Guimarães e Sara Tavares. E não me sinto sozinha acreditando nas esperanças do amor, nas certezas que comecei a ter, há algum tempo, de que as coisas sempre parecerão um tanto a resolver, a vida é mais do que resolução de problemas e explicações sobre deus, morte e natureza.
Tudo isso eu pensei ao som de Coltrane, Dedicated to You (e Charles Hayden, Ella e Nina também).