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sábado, fevereiro 15, 2014

Negrissa.

Desci do ônibus para ir ao banheiro e quando eu voltei ela estava sentada em meu lugar. Uma senhora negra com algumas sacolas. Disse que eu estava ali e ela fez um ar de surpresa, mesmo vendo alguns dos meus pertences sobre o banco. Permiti então que ela ficasse à janela, eu ficaria no corredor. Ela não pareceu entender que eu tinha feito um favor, antes postou-se cômoda na minha poltrona e fez alguns resmungos. Na hora, lembrei-me de uma amiga que me disse, no Jardim Botânico do Rio, quando vimos uma senhora negra andando com dificuldade e que nos perguntou onde ela poderia fazer um piquenique sossegada. Essa amiga me disse: 

Você não acha que quando essas coisas acontecem é porque estão a nos dizer alguma coisa? Digo, ela anda bem parecida com Nanà, mas não é que ela é Nanà. Talvez ela apareça só pra nos lembrar de algo. 

Fiquei pensando no que Negrissa queria me lembrar. Começamos a conversar, ela me contou da sua vida resumidamente, como já tivesse feito isso muitas vezes, para várias pessoas diferentes. Falou pouco, mas disse muito. Pelas minhas contas, tinha 76 anos. Tinha saído de Marília com 16 rumo a Dourados e lá ainda estava, sessenta anos depois. O marido morreu, ela tinha casado com outros homens, tentado algumas vezes, mas agora estava só. 
Tinha nove filhos, mas pariu catorze. Umas das coisas que emocionou-me quando disse foi: 

Eu nunca trabalhei pra ninguém. Nunca fui doméstica, nunca trabalhei na casa de ninguém. Sempre trabalhei pra mim, na roça ou costurando. Ensinei isso pras minhas filhas, mas algumas delas, pra ter algum dinheiro, foram empregadas. Mas eu não queria isso, eu nunca gostei de trabalhar na casa de ninguém. 

Negrissa quebrou um ciclo vicioso e doentio imposto às mulheres negras desde que aqui chegamos à época da escravização. Disse não a um dos poucos trabalhos vistos como possíveis de serem feitos por nós, com todos os problemas que essas decisão pode ter trazido para ela (eu imagino as dificuldades, eu não condeno quem diz sim. Estou apenas contando uma outra versão da história). Negrissa quebrou o ciclo, mas comprovando como essa ação é ousada e difícil de manter, a geração posterior à dela não conseguiu permanecer firme. 

Ela e eu cochilamos. Fiquei pensando no que ela disse e não consegui entabular mais conversas. Ela contou mais algumas coisas, como uma cirurgia no olho que havia acabado de fazer, sobre seus vinte netos/as e dois bisnetos. Quando a viagem acabou, despedi-me dela com um beijo no rosto e um abraço forte. Agora, quando lembro desse momento, sinto que poderia chorar se ao invés de escrevendo, estivesse contando em voz alta para alguém. 

Depois disso, ouvi minha amiga contando que seu pai fizera o mesmo movimento com relação ao trabalho doméstico: decidiu não trabalhar para os "brancos", como ele falava, tendo uma roça e vivendo do plantio e da colheita desta durante toda a vida. Minha amiga disse que quando pequena, não entendia porque seu pai demonstrava tanto desprezo pelo grupo social que subjugou o povo negro, sempre vociferando palavras de ódio contra eles. Hoje, ela entende melhor. Com essa decisão,  não acumularam nada, não tiveram patrimônio para deixar às crias, mas também não se renderam. Minha amiga, desta família de seis filhos, é a única que possui mestrado em Letras. O pai dela, antes de falecer, tinha certeza que ela estava estudando para ser médica, visto que o estudo nunca acabava. 

Fiquei pensando então, que este modelo de "revolta" é uma das muitas estratégias elaboradas por negras e negros pós-abolição, visto que ainda hoje temos mulheres e homens negros que se negam a fazer este tipo de serviço. Merece estudo, merece registro. 

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