Era um dia quente em São Paulo quando o moço passou por mim, eu saía do trabalho. Ele descia a rua calmamente, numa bicicleta verde. Chamava a atenção seu capacete com pisca-pisca e sua indumentária politicamente correta, num tempo em que quase ninguém ligava para isso. Eu olhei para bicicleta e para as luzes, mas notei que ele me olhava também. Eu, recém-chegada na cidade grande e desacostumada com o frio do outono, não pude deixar de registrar o primeiro dia de sol daquela estação, junto com o sorriso dele, descendo a rua, de bicicleta.
Depois desse dia, descobri que ele passava ali, todos os dias, religiosamente, às dezenove horas. Sua passagem, então, passou a ser o meu relógio: depois que ele descia a rua, era hora de ir pra casa. Pouco a pouco, a luz piscante e a indumentária já não eram o que chamavam mais atenção. Ele me olhava, muito rápido, seja por timidez ou por estar dirigindo sua bicicleta. Àquela época, eu trabalhava na rua General Jardim e descia a pé todos os dias para a estação República do metrô. Achava graça ir parando e olhando as lojas, as pessoas, tantas pessoas, as conversas entrecortadas nos semáforos, as pressas, os casais, a solidão. Foi assim que, um dia, na esquina da General Jardim com a Rêgo Freitas, parei no semáforo e reconheci ele, pela bicicleta e pelo sorriso. Lá estava o moço, parado à frente dos carros, esperando sua vez, próximo dos pedestres que atravessavam. Passei a faixa e notei que ele me olhava, em meio ao mar de gente que seguia em frente, correndo para chegarem mais rápido em suas casas. Notei que ele me olhava mesmo sem para ele olhar, era como se soubesse que ele me reconhecia da rua General Jardim, como se ele também soubesse que eu o esperava ali, nosso segredo.
Mas quando eu atravessava, ele parava. Estávamos em posições diferentes naquele trânsito que ia e vinha, sempre. Decidi, então, aprender a andar de bicicleta. Sim, eu não sabia. Nem sequer tinha me dado conta que já tinha 25 anos e nunca havia terminado as lições da adolescência. Abandonei-as quando entrei na universidade, pareciam sem serventia e faziam sentir-me desengonçada na frente das pessoas. Tentar aprender a andar de bicicleta para mim era um jeito de aproximar-me dele, das coisas que ele fazia, do que ele gostava. Quem sabe a gente se encontrava por aí, num semáforo fechado qualquer...
Foi bem nesse tempo que começou uma campanha nas redes sociais sobre como as pessoas que se movimentavam na cidade a pé poderiam ajudar a melhorar o trânsito. Li num jornal paulistano de grande circulação em como a Companhia de Engenharia de Tráfego estava preocupada em fazer com que os pedestres também se mobilizassem a favor de uma cidade melhor para as pessoas que nela circulavam, a pé, de bicicleta, de trem, metrô, ônibus, de carro. Marcaram uma grande manifestação no vão livre do MASP, com todo mundo saindo a pé dos arredores do centro, de onde quisessem, para fazer uma caminhada pela paz no trânsito, pela convivência e segurança de todas as pessoas. Eu morava na Vila Mariana, e decidi pegar o metrô até a Estação Trianon-MASP para participar do evento.
Apesar de não ter certeza, imaginava que ele estaria naquela marcha. Pensei que talvez pudéssemos conversar sobre capacetes e ciclismo, porque minha intenção era, depois de uns meses, ir para o trabalho de bicicleta, mas ainda não entendia nada de proteção no trânsito. Chegando lá, no meio de tantas pessoas, eu o vi. Ele fazia parte de uma das organizações que promoviam a caminhada e, por isso, estava num carro alegórico com sua roupa de ciclista. Achei engraçado, e mais engraçado ainda quando percebi que ele também me reconheceu. Mas, mais uma vez, não conseguimos nos falar. Ele estava trabalhando, seguindo pela Avenida Paulista com seu capacete que piscava e uma faixa onde se lia: O trânsito é de todos! Todas as pessoas podem contribuir para um trânsito mais seguro!
Dei meia-volta ali mesmo da estação Consolação e voltei andando para casa. Tentei encontrar outro ciclista que pudesse cruzar o meu caminho e me fazer esquecer o moço. Mas, toda bicicleta que passava tinha a cor verde e nos rostos, era seu sorriso que eu via. Entrei em casa, me enterrei no sofá. Liguei a TV’ e deparei-me com a imagem dele e da faixa que segurava estampada na tela, uma matéria sobre o sucesso da caminhada no centro. Depois disso, resolvi ir dormir.
Acordei naquela segunda-feira pensando nas coisas boas que aquele amor em trânsito havia me proporcionado. Eu tinha aprendido a andar de bicicleta e agora, estava tentando tornar-me uma expertise em proteção em duas rodas. Tomei meu café sem açúcar e segui para o trabalho. Aquele seria o primeiro dia em que eu não esperaria a bicicleta verde para ir embora. Dezenove horas, arrumei minhas coisas, como de costume. Na esquina da General Jardim com a Marquês de Itu, avistei a silhueta de um homem com um buquê de flores. Chegando mais perto, reconheci seu sorriso. Ele, meio tímido e ofegante, disse:
- Vim a pé. Vou te levar no metrô.
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