Dona Ivone Lara, sem data.
Pela segunda vez, fui assistir ao filme Nise: O coração da loucura. Eu havia visto o filme e notado a presença de uma enfermeira negra no elenco, o nome dela era Ivone. Mas não, eu não sabia que a tal moça era Dona Ivone Lara, a nossa Ivone. Depois que um amigo me mandou essa matéria (apesar de elucidativa, a moça da matéria não pareceu tão assustada quanto eu com o total apagamento de Ivone no filme), saí caçando materiais pela internet e encontrei mais informações. Fiquei matutando o porque fiquei pensando tanto nisso o final de semana inteiro. Descobri que é porque senti-me enganada.
Quando vou ao cinema e encontro no filme referências de coisas, pessoas e lugares que eu não conheço, chego em casa e faço pesquisas, procuro matérias, leio curiosidades. É assim que vou além da pretensão do diretor, alargando a ideia de filme para fazer um outro, saído aqui da minha cabeça. Mas eu não pesquisei sobre Ivone porque no filme, não há qualquer menção que Ivone é Dona Ivone. Conversei com amigas, algumas delas sabiam que Dona Ivone havia sido enfermeira. Eu não, e com certeza, numa outra situação, esse filme seria o lugar para descobrir isso que algumas pessoas já sabiam.
Não entendi o motivo pelo qual, num filme em que se pretende afirmar a força de uma mulher, uma outra mulher (negra) não poderia ter sido mencionada, já que ela teve uma grande participação na revolução feita ao atendimento psiquiátrico à época (bom, já não nos podem chamar malucas quando dissermos que no meio do feminismo e da raça há racismo, há racismo no meio do feminismo e da raça). Não entendi também porque não foi possível enfatizar que o que houve foi um trabalho de grupo - e fazer isso sem menosprezar as atividades de enfermeiros e assistentes sociais - e ao mesmo tempo mostrar uma mulher forte e destemida. Não entendi a omissão dos motivos pelos quais Nise foi presa e afastada do Hospital.
Depois que passou essa sensação de ter sido enganada, lembrei que além de enganada, senti-me triste. Triste porque acho que não gostaria mesmo que Ivone do filme fosse Dona Ivone Lara, já que Ivone do filme é uma mulher que em nada lembra ela, porque nele ela não tem participação ativa, demonstrando apenas receber ordens de Nise, desconhecer o que pode ser feito com os clientes - termo usado por Nise para identificar os pacientes (acho a troca de termo ruim, muito embora também fique na dúvida se gosto do termo paciente para este caso) ou não ter nenhuma iniciativa. No filme, é uma Ivone que mais parece uma menina assustada, que formou-se a partir da experiência que obteve no tempo em que trabalhou com Nise, o que não nos faz pensar que essa mulher já era enfermeira e assistente social formada (isso em 1940!), além de sambista, tendo estudado música - e sido deveras elogiada! - com Lucília Villa-Lobos. Segundo o vídeo que encontrei ao acessar a matéria de Daniela Name, Dona Ivone Lara teve participação ativa no trabalho coletivo que Nise desempenhou no hospital, tendo mesmo sido responsável por algumas ações em que o filme narra - a doação dos instrumentos para o trabalho no hospital, a busca pelas famílias!
Ivone Lara recebe uma homenagem dos médicos do Engenho de Dentro. Acervo família da artista, s/d
Um filme é feito de escolhas, dizem todos. A vida de Nise também foi recortada (até o sotaque dela eles tiraram!), dizem outros. Tudo isso eu também acho. Mas eu não estou falando de uma simples escolha, estou falando de apagamento da história de uma pessoa. Não é simplesmente escolher não falar de um assunto, é que ao omitir UMA informação - tivesse Ivone no filme dito seu sobrenome (quatro letrinhas que não aumentaria em nada o tempo da cena!), eu sairia de lá com a pulga atrás da orelha para pesquisar sobre a moça - que representa parte da história da vida de muitas mulheres negras neste país! Para entender a parada, vamos mudar a personagem, a cor dela e o gênero: pense se ela fosse casada com Florestan Fernandes será que iriam fazer o mesmo? Esse exercício de mudar a personagem, me faz encafifar ainda mais, porque parece que a tal escolha do diretor seguiu a mesma orientação, já que ele escolheu privilegiar Almir Mavignier, artista plástico também participante do filme (aliás, a estagiária que aparece da metade pro fim aparece mais que Ivone!). Será que comandar uma mulher negra pareceria comum demais e por isso optou-se por reforçar a imagem de uma Nise corajosa, ao mostrá-la no comando de homens brancos? Será que mostrar a parceria com uma mulher negra não tornaria a história verossímil?
Um filme não vai mudar o mundo, um filme não vai resolver problemas. Eu sei bem disso. Mas o que novamente me faz sentir alguma coisa - e agora é uma quase-raiva - é pensar o quanto isso já foi feito, quando vemos atores e atrizes brancas representando personagens que na vida real eram negros e a gente passa a vida toda sem saber que cor aquela pessoa era. Mas também não é só isso. Fiquei pensando no tanto de coisas que eu não sei, de histórias que não me contaram, depois que essa escapou assim, depois que vi o filme, numa matéria. Com certeza, em tantos outros filmes, "escolheram falar apenas dessa ou daquela pessoa, que invariavelmente eram brancas. É isso que dá a sensação de enganação, de tristeza, de quase-raiva. Não quero que os filmes resolvam problemas, eles podem seguir editando biografias. Sei que elas não param por ali. O que acho que eles não pode fazer é tentar apagar uma biografia, com foi o caso desse.
Poderia terminar esse texto mandando algum samba bonito de Dona Ivone Lara, só para acalmar meu coração. Mas não. Termino aqui em silêncio, porque é com um silêncio agoniado que todo mundo que leu isso aqui tem que dormir. Quem sabe assim a gente consiga entender porque certas loucuras continuam ser feitas com tantos corações.
Para saber mais, indico o livro de Dona Kátia Costa-Santos chamado Ivone Lara, a dona da melodia, publicado em 2011 pela Editora Garamond. Dá pra comprar aqui.Poderia terminar esse texto mandando algum samba bonito de Dona Ivone Lara, só para acalmar meu coração. Mas não. Termino aqui em silêncio, porque é com um silêncio agoniado que todo mundo que leu isso aqui tem que dormir. Quem sabe assim a gente consiga entender porque certas loucuras continuam ser feitas com tantos corações.
Um comentário:
Excelente, tem pouca informação sobre este fato na internet. Sempre apontaram como um bom filme, poucos se atentaram ao apagamento de Dona Ivone.
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