Uma vez, conversando com um amigo, advogado negro, ele me disse que um dos motivos pelos quais alguém poderia ser denunciado por preconceito racial seria se esta pessoa, entre outras coisas, cerceasse a liberdade de ir e vir de alguém (ou lhe impedisse o acesso, as oportunidades) por conta de seu pertencimento racial. Hoje, ao precisar entrar no Conjunto Nacional para comprar um DVD' numa livraria no centro de São Paulo, um segurança branco disse-me que eu não entraria, porque a livraria estava fechada, em razão dos protestos que pipocavam na rua à frente. Argumentei que era impossível estar fechada e que eu precisava entrar, em vão.
Aguardei por alguns minutos, sem muitas esperanças, mas eis que surge um grupo de pessoas brancas, duas mulheres e um homem, e começam a dizer:
- Precisamos entrar, vamos buscar uma encomenda, somos estudantes...
Nem terminam a frase, o segurança negro - que acompanhava o moço que me disse não - indica o caminho. Fiquei atrás do grupo e disse:
- Se eles vão entrar, eu também vou.
E ele respondeu-me:
- Calma, senhora, a senhora vai entrar, calma.
Disse a ele que estava sendo tratada de modo diferente daquele grupo que havia chegado depois de mim e entrado sem fazer muito esforço, que eu não ia aceitar receber um tratamento que não me desse o mesmo direito... demonstrei chateação, mas a voz começou a embargar e foi sumindo... fui falando e andando, calei-me.
Entrei, fiz minhas compras. E pensei, quando sair lá fora de novo, vou conversar com ele, pedir desculpas pela minha agressividade, não sou de fazer dessas coisas, mas queria que ele entendesse que ele não havia me dado o mesmo tratamento e não havia me olhado como ser humano, gente que compra, gente que vai para lá e para cá.
Respirei fundo, passei por ele e disse que perdoasse minha cabeça quente, que eu havia me irritado demais, ele reconheceu que não havia sido justo, mas não por racismo, e sim, talvez, por uma orientação mal dada por parte da segurança interna... apertamos as mãos, fui-me embora.
E fiquei pensando que, por mais que eu gritasse com ele, que o xingasse de racista ou mesmo que conversasse com ele por horas, não conseguiria tirar de dentro de mim essa sensação de incapacidade e impotência que essas situações me fazem sentir... essa sensação de que nada do que vivo fazendo, conversando, as aulas que ministro, cursos de formação, as leituras, escrituras sobre o tema da educação para as relações raciais, nada disso vai adiantar.
Houve um tempo em que eu queria ir pra cima, criminalizar, prender, brigar, me esgoelar. Depois de um tempo, eu entendi que o racismo é estruturante das relações humanas e comecei a perceber que quem pratica o racismo é muitas vezes vítima. Agora, penso em querer educar para a vida em conjunto e não apenas ver a pessoa na cadeia. Estou nesse tempo agora. Por isso, fui lá conversar com ele. Mas, não é fácil e também não "resolve", como não resolve só prender. Tem um sentido político criminalizar a ação racista, mas a gente, que vive o racismo de todos os dias, sabe que não são as penas que mudam a cabeça das gentes.
Mas, o que eu gostaria mesmo é de estar num tempo em que eu não precisasse viver isso. Ouvir, ver. Fico tentando pensar que não, ele não fez isso. Fico tentando imaginar que não foi bem assim desse jeito, mas foi, mas foi. Então lembro de como seu corpo se projetou a favor do grupo enquanto elas falavam e de como nenhum dos dois nem ao menos deram-me atenção direito (perto de mim havia uma outra mulher negra, essa mais moça, com os cabelos presos para cima, crespos também, que foi ignorada ainda mais por aqueles homens. Eu disse-lhe, assim que o grupo chegou, que se ele favorecesse a estes e nos deixasse de fora - ela também queria ir à livraria - eu iria reclamar por conta do favorecimento, citando para ela que só porque éramos pretas ele não poderia nos tratar assim. Ela disse um "é, isso ainda existe", de cabeça baixa e mexendo no celular), como o segurança branco nem ao menos se deu ao trabalho de dizer ao grupo de pessoas brancas o que havia me dito, sobre a livraria estar fechada e como ele nem lembrou de me incluir no grupo para entrar, visto que a orientação havia sido mudada em cinco minutos... e finjo não querer acreditar que eles realmente me desqualificaram pela minha cor e cabelo.
Lembro agora que eu só continuei ali quando eles me disseram não porque, um outro segurança, o primeiro a quem eu havia me dirigido, chamou-me de canto e disse: Espera um pouco, vou dar um jeito. Voltei a ele quando o moço me disse que a livraria tinha fechado, e ele passou a conversar comigo, falávamos da manifestação. Isso me deixou em dúvida sobre a livraria estar ou não fechada, mas, por ver a outra moça negra e a boa vontade dele, fui ficando. E comecei a reparar nas pessoas que iam entrando, até que... o tal grupo chegou. Se não tivesse sido tão rápido, eu teria ido para casa realmente achando que ninguém havia entrado, que a regra valia para todo mundo. Não veria assim, a discriminação dos seguranças e seus favorecimentos por conta da cor da pele. Fiquei pensando então que talvez isso já tivesse acontecido comigo outras vezes, mas a questão é que eu sempre ia embora com o primeiro não. E talvez nesse primeiro não, já houvesse um tiquinho de preconceito e desfavorecimento.
Na hora, e um pouco depois, não consegui entender o que estava me incomodando. Mas, assim que cheguei em casa, desabei em lágrimas. E só então entendi que estava chorando porque não queria ter passado por aquilo, porque sei o quanto aquilo vai me fazer mal, vai me tornar uma pessoa mais dura e menos esperançosa da vida, das pessoas. Uma agonia, não sei se consigo me fazer entender. Mas a sensação de que não sou vista como gente, como ser humano, pelas pessoas ao meu redor é... triste, deprimente... dolorosa, indecente! Fui lembrando de tantas situações! E chorando de novo por cada uma delas.
Espero uma flor. Talvez uma camélia possa me fazer mais feliz e me fazer menos doída.
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