Comecei a ler alguns artigos e um deles lembrou-me um livro que li quando tinha 14 anos. Lá estava eu às duas da manhã procurando o tal livro em minha estante, tinha certeza que nunca tinha me desfeito dele, passados 15 anos... encontrei na última pilha de livros, quase o último.
Abri-o e ainda estava lá com algumas anotações minhas:
Nasci em Itabuna, no dia 14 de novembro de 1980. Peregrinei muitas terras, até chegar em Salvador, onde resido atualmente. Conheci várias pessoas que são importantes para a minha vida. Dayse é uma menina [...]
Eu lembro muito do livro e das sensações que ele me provocou à época. Uma das partes que eu mais gostei (passei o restinho da madrugada relendo esse livro e mais o de Neusa Santos, Tornar-se Negro, além de consolar minha amiga que do aeroporto me ligou para dizer da saudade de seu amor que havia partido para uma viagem de cinco meses, Washington D.C.) e ainda gosto, não sei dizer direito porque, é:
Foi exatamente nessa época que peguei bicho-de-pé. Fiquei imensamente feliz. A única coisa que atrapalhava é que não podia contar para ninguém, nem para minha mãe, porque quando ela descobria que qualquer um de nós conseguia um, pegava logo uma agulha, queimava a pontinha na labareda da lamparina e cutucava até arrancar o querido bicho do dedo da gente.
Mas eu já não estava só. Com meu bicho-de-pé mantive diálogos longos.
Para ele passava minhas tristezas e alegrias. Havia um fio interno que levava meu pensamento até sua casinha, na curva do dedo do pé. Daí vinha uma coceira gostosa, trazendo-me respostas, consolos. Nossos pensamentos se cruzavam, rindo ou chorando. (GUIMARÃES, Geni. A Cor da Ternura. São Paulo: FTD, 1992)
Deixei as palavras tomarem meu corpo, lembrei-me de minha vida adolescente e o quanto aquela escrita fez parte de minha vida por alguns anos. Geni não sabe mas, ela é responsável por parte de minha verdadeira paixão pela escrita, pelos livros. Engraçado é que só muito recentemente comecei a pesquisar sobre ela e tudo que fez e escreveu.
Especialmente agora, quando escrevo e escrevo, lembro de Geni e de bel hooks em seu ótimo texto
Intelectuais Negras. Mesmo durante esse confinamento a que estou submetida, prenha de ideias e emoções, posso dizer que sinto-me acompanhada. Nunca achei que escreveria um texto acadêmico e me deliciaria tanto com essas sensações e o quanto me sentiria acompanhada por tantas pessoas, vivas, "mortas", palavras, forças. São incontáveis os momentos em que choro relendo o que escrevi ou o que ouvi de outras mulheres negras.
Encontrei foto de Geni e mais lágrimas vieram-me aos olhos. Escolhi então uma poesia dela que me faz tão bem agora (orgulhosa dela ser professora, assim como eu):
CRISE
(Geni Guimarães)
Sou toda crise
Sou crise de angústia fechada, absorta,
Sou o embaraço do tempo, inconstante de tempo.
Sou cheia e oca,
Original e reprise.
Sou toda, inteira crise.
Sou o eco do riso rasgado, atirado,
Lançado no espaço pelo medo do choro.
Sou presente do futuro,
Sou areia e muro.
Sou o próprio desafinar de uma música em coro.
Sou toda, completa crise,
Arranjo e desarranjo de uma mesa.
Sou lápide, rumo, desvio.
Posso ser um horizonte aberto,
Nu, incerto, frio.
sou a rotação dos sentidos,
a translação de imagens,
Sou a brisa dos ouvidos, dos ecos,
Materia de bonecos.
Acho que vim para passar,
E fiquei na passagem.
É, sou crise.
A crise da visão dos cegos,
A esfinge do meu próprio ego.
Sou o sossego da crise de fera.
Sou,
Fui,
Sei e aceito ser,
Porque antes de nascer, já era.
(Extraído do livro Terceiro Filho, 1979)
E pra terminar, já que bicho-de-pé não há (nunca tive um...), arrisco em dizer que o celular e as mensagens de texto que me chegam fazem as vezes de fio por onde vai meu pensamento... Tarde, bem tarde, dia desses, depois de desejar boa noite, preto, ele me segredou:
Minha neguinha! Te amo! Você é f...!Exemplo de mulher negra!
Não consegui dormir de pronto, mas com certeza, quando consegui, fui mais feliz. Orgulhosa de mim, e dele.