Vez por outra lembro do que me disse um amigo a quem chamo carinhosamente de Professor. Chovia muito depois de um dia cansativo, e eu reclamava
caramba, quero ir pra casa
E ele, com toda a paciência do mundo, me disse
eu não tenho pressa, já tou em casa
E fez um círculo, ele tava dizendo que a casa dele era bem ali, o mundo todo.
Fiquei sem graça. Fiquei mais calma. E agora, quando tenho tempo, e normalmente eu sempre tenho uns retalhos de tempo, eu ando mais devagar. As pessoas quando passam apressadas, me perguntam
tá cansada?
Eu respondo
não, tou andando devagar mesmo
Elas continuam, sem entender nada. Acabei descobrindo que a gente está sempre correndo, mesmo que não tenha nada pra fazer. Pela força do hábito? Ou pela desforça da mudança? Se eu vou chegar em casa, preparar um lanche, ver um filme, que me custa andar mais devagar e reparar que a rua onde eu moro mudaram as placas? Não me custa nada papear mais um pouco com aquele moço dali do semáforo, vai ser bom pra mim, vai ser bom pro mundo, minha casa.
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Tem coisa que eu quero escrever, mas esqueço. Isso acontece com você? Estou aprendendo que aprendi tudo errado, então tenho muito chão pela frente. Quando vou estudar sobre sincretismo religioso, descubro que ele nunca existiu. É tudo intriga. Quando vou estudar sobre o candomblé, descubro que o candomblé nagô não é o único, e que a matriz bantu também traz coisas interessantes, como a questão da ancestralidade, inquice. Remédio pra ignorância é leitura, mizifi.
Mas eu vou e volto. Li em algum lugar que esse troço de livro e leitura só não é coisa de inteligente. Coisa boa mesmo é produzir conhecimento. Mas isso a gente não aprende na escola, e é por isso que a gente gosta da rua, por que na rua você pode inventar e ser o que quiser, na escola tem trrrrim pra entrar e trrrim pra sair, eu fico pensando no quanto de mal eu faço às crianças, queria ficar ali só ouvindo elas todas, mas tenho que organizar as coisas, mediar as coisas, meudeusdocéu, eu com minhas adultices destruo partes de sonhos, metades de imaginações, cabo de vassoura que era cavalo e cabou, migh chegou, é hora de fazer pipi, tomar água, hora do parque, hora do lanche, hora de não ser mais feliz. Tento ao máximo não me intrometer na vida e no sonho deles e delas, mas eu sou a chata que estraga festas em reinados impensados, mando levanta menino e menina, vem limpar nariz, vem trocar fralda, vamos cantar música, dança assim, sorri agora, desce da mesa, ops, não era mesa, era navio, pum, cabou.
Fico pensando nisso tudo e fico pensando como elas são legais de me deixarem ficar ali perto delas, todos os dias eu chego para organizar a vida delas (como se isso fosse boa coisa), e mesmo assim elas me abraçam e me beijam, me dizem, tá, a gente te perdoa, mas hoje eu posso subir na mesa só um pouquinho, elas pensam que eu vou deixar, mas eu não deixo de novo, eu sou má, mas elas sempre me perdoam. São crianças, enfim. E eu que roubo tanto delas, brilho, graça e vida, o que dou a elas? O que de mim elas podem levar pra casa?
Faz algum tempo que minha rabugentice com gente adulta me faz adiar reuniões, detestar encontros de trabalho, fugir de compromissos com gente que quer ser grande a qualquer custo. Esse é um dos meus defeitos confessos.
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Um cara aí, nem vou dar ibope, escreveu que a colonização ajudou a civilizar o Brasil, e eu penso, um cabra desse estudou com dinheiro meu, vai pra fora do Brasil e diz que representa o pensamento acadêmico nacional, blergh, que nojo.
Sou rabugenta, não disse? Quer ver outro defeito? Ficar com a língua coçando pra dizer o que penso. Escrevi pra ele
talvez isso seja estranho para você, mas de onde eu venho, pessoas gostam de pessoas e quando as pessoas são gostadas, a gente cuida delas. Não é que eu saia transando por aí com qualquer pessoa, ou falando de mim para todo mundo, então quando acontece, é sempre uma coisa especial, que ao meu ver tem que ser cultivada (não necessariamente a trepada tem que ser cultivada – aha, mundo vegetal, cultivo de trepadeiras – mas a coisa de ter encontrado alguém legal para conversar, sei lá, sair, fazer coisas interessantes, tomar porre, etc). É uma pena que você não seja livre. E não falo pelo seu casamento, não. Conheço gente casada há anos que são bem mais livres do que você. Digo, livre dentro, da cabeça, do coração, sabe?
mas tá, pode ser uma grande bobagem, pode ser que tudo isso que você diz e que eu acho seja só uma desculpa sua para não aparecer mais (e eu queria dizer aqui que você não precisa se assustar comigo, não, não quero casar com você, nem vou aparecer na sua porta nua, essas maluquices engraçadas de mulher apaixonada), mas de qualquer modo, não deixa de ser uma pena. Se você não é livre, é uma pena. E se você precisou fazer tipo pra conseguir transar comigo, é uma pena também.
não se importe com o que eu estou escrevendo. É que quando eu quero falar, eu falo mesmo, não mando recado. Sei que não estou certa sempre. Mas não deixo de falar por que senão fico agoniada (quero ter o direito de dizer meus erros todos em voz alta, já disse Max de Castro), fico mal, pensandopensandopensando ufa, ufa. Pra acabar com os pensamentos, eu falo pra pessoa o que eu penso, só por que eu acho que ela tem o direito de saber o que acho dela, só isso. E por favor, não me ache atrevida! Esse costume de ser direta, mandar na lata o que sinto e acho ainda vai me causar problemas... mas não tem preço dizer o que pensa, né?
também não pense que quero te ver de novo e só por isso escrevi. Eu seria bem clara e diria “quero te ver”, como fiz das outras vezes. Esse e-mail é só o que tem nele, só isso, nada mais, nada antes, nada depois. Ele existe pelo simples fato de que eu não consigo me acostumar com algumas coisas, não consigo me contentar com pouco na vida.
sabe, às vezes penso também que você deve me achar uma moça muito legal e que não merece um cara tão enrolado e confuso como você do lado. Não deixa de ser uma outra boa desculpa! Eheheheheeheheh... não se chateie comigo.
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20.06.2008
Gabriel Joaquim dos Santos, filho de ex-escravizado com mãe nativa, no filme O Fio da Memória, Eduardo Coutinho, diz
Pensa que sou eu quem faço essas coisas? É tudo espiritual. Eu mesmo faço, eu mesmo me admiro.
Erci da Cruz de Souza, mulher do neto de João da Cruz de Souza, fundador do simbolismo brasileiro, mesmo filme,
Meu pai era um negro bacana. Minha mãe era negra. Não tinha nada de mistura, não. E meus avós eram escravos.
O filme tem lá seus problemas de interpretação, feito em 1988, mas mesmo assim, assista, chore, tenha orgulho de ser negra.